Uma música boa

Joan, dentro de você eu ouvia glory box tocando.

Em abril as coisas pareciam tão anestesiadas, sem motivos. Kaio me olhava deitado, com os olhos parados, respiração funda, um mundo sem sentido me cobrir com um sorriso de dor. E ele me dizia, "Yuri, você quer se sentir assim". Eu o olhei. Ele se levantou e foi embora. E os dias que se seguiram não foram diferentes. E então eu me deixei.

Durante a semana eu deitava a cabeça sobre os pulsos, fechava os olhos, nada no mundo. Lá embaixo todos oravam pela recuperação da minha mãe, por dias mais fartos, por mim, e eu se quer estava lá, nada cabia dentro de mim. Foi em uma dessas tardes em que o Kaio deixou de voltar, eu conheci Joan. Eu lembro exatamente como foi, apesar de inventar várias outras histórias por cima, eu preciso o confundir e talvez eu devesse me esforçar mais (rs), Joan havia comentado em um grupo de frequentadores de uma série mais-ou-menos-adolescente sobre a sua música nova, composição própria. Eu que precisava me distrair decidi ver, era uma boa música. Em uma breve pesquisa descobri que morávamos próximos, que curtíamos os mesmos lugares, e que quando ele deixava o cabelo cachear ficava muito bonito, mas que éramos completamente diferentes um do outro. E então eu o chamei em um conversa, sem pretensão, nada sexual ou premeditado, apenas conversa. Logo ele respondeu e começamos a conversar.

Lembro bem, que apesar de Joan ser muito bonito, eu quis o apresentar para um amigo, solteiro, é que faziam mais o tipo um do outro. As conversas foram se prolongando, cada vez mais duradouras, conversas sobre tudo, sobre todos. Não sei se chegamos no Kaio, era se não a pior coisa, uma muito ruim que me acontecia no meio de toda aquela bagunça, e eu buscava fugir disso.

Eu já não podia mais estar naquela situação. Prometi da primeira vez que nunca mais me permitiria sentir algo parecido, e que quando os sintomas se mostrassem, eu tomaria uma iniciativa, e então, já que o Kaio me evitava lhe enviei uma mensagem dizendo que precisava de um tempo. Ele já havia proposto isto, e eu encarei de forma negativa, disse que se fosse assim, que preferia que tudo acabasse ali, e eu sabia que ele lembraria disso, aconteceu. Eu sentia dentro de mim que o Kaio já não estava mais comigo. Que covarde! - pensei, ele me adoeceu, ele me torturou, ele ria de mim, me via chorar e me olhava com orgulho. Ascendia um cigarro enquanto meus olhos ardiam de tanto eu os esfregar, e ria. Ele sabia que me fazia sentir toda aquela dor, e ria, e no dia seguinte não descansaria enquanto não dobrasse a dose. E eu? Eu caí na dele pela segunda vez. Um total de quase três anos de tristeza e desordem se enraizando na minha pele, no meu sangue, apertando meu estômago, tomando conta de todo o meu corpo enquanto ele se sentava na minha frente, deixava o cigarro queimar entre os dedos e ria, e eu só entendi isso muitas semanas depois.

Passaram duas semanas, eu o liguei, eu chorava, era preciso que ele, Kaio, soubesse de tudo que eu sempre quis esconder do mundo. Talvez ele entendesse, talvez ele quisesse tentar. Eu estava no trabalho quando disse que precisava falar com ele, ele disse que não podia falar comigo, que estava atrasado para encontrar uma amiga. Eu desci as escadas correndo, chovia muito, abri o guarda-chuva, eu chorava, aparentemente era só o que eu fazia nos últimos meses, escondi o rosto, eu gritava para ele na nossa ligação, toda a história, e chorava, ele ouvia. Eu disse que se ele quisesse ficar comigo que não fosse por pena. Ele disse que me amava, disse que nunca faria isso, e depois disse que me amava novamente. Ele desligou. Poucas horas depois terminamos. Nada era o bastante.

Semanas depois voltei a conversar com Joan, mas agora iniciávamos pequenos flertes. Eu me forçava viver um mundo que já não conhecia mais. Eu estava sozinho. Lembro de Joan me dizer que eu mexia com ele. Eu pousava a cabeça sobre o braço do sofá no meio da madrugada e ouvia a voz dele pela mensagem de áudio, lembro de pensar que tudo aquilo parecia ser muito infantil, que estava me precipitando, que provavelmente ele olharia para mim e me acharia a pessoa mais desesperada do mundo, eu parecia um toxicômano em reabilitação. Com o tempo Joan sumiu, disse que precisava se curar, e que eu o deixava doente. Provavelmente sim, eu exalava os piores sentimentos do mundo, eu se quer sorria.

Alguns meses depois eu já passeava com as cadelas, corria na Praia de Botafogo, jogava vôlei no Aterro do Flamengo, e tinha encontros legais. Mas meu pensamento ainda se dividia em "será que Kaio pensaem mim", e "como será que Joan está?", e eu não sei dizer qual dos dois prevaleciam. Então uma noite fui ao teatro Poeirinha, na Rua São João Batista, e no meio de um dos atos recebi uma mensagem de Joan, disse que estava bem, que pensava em mim. Eu saí assim que o espetáculo acabou, deixei meus amigos se distraírem e corri para casa e logo tratei de responder, de dar continuidade na conversa. Alguns dias depois o convidei para o aniversário da minha tia que iria fazer sessenta anos, seria nosso segundo encontro. O primeiro encontro ele não vai lembrar, nunca, por que ele não sabe. Mas uma vez, uns amigos me arrastaram para uma festa no Raízes, eu estava afogado ainda no meu pior momento, meu término ainda era recente, e eu vi Joan passar. Eu me escondi na Pizzaria Guanabara, eu o vi passar e não deixei que ele me visse. Mas dessa vez teríamos um encontro legal, eu achei. Eu o convidei para minha casa, eu já havia enrolado demais esse momento, mas não podia continuar daquela maneira. Eu não consegui tomar banho. Eu carregava mais ou menos trinta sacolas de compras para dentro do apartamento a cada uma hora, fora todo o preparo que foi feito por mim. Quando Joan chegou no metrô de Botafogo eu o fui encontrar. Ele havia descido na saída errada, então eu corri por quase setecentos metros para o encontrar na Rua São Clemente. Estávamos em ligação. Ele me viu, me abraçou, me olhou, se jogou por cima de mim e encostou os lábios nos meus. Ele se prendeu em mim por todo o caminho da Saída da São Clemente do metrô de Botafogo, até a Rua Real Grandeza. Ele se agarrou em mim e eu pude me sentir feliz de novo. Pela primeira vez eu já não pensava em tudo o que tinha acontecido, eu estava feliz e o via feliz também.

Eu já não via Joan infantil, inclusive estamos muito bem, obrigado. Eu demorei algum tempo para dizer que achava que estava gostando dele (rs), e ele riu. Joan sabe que gosto de batatas, então me levou para comer as melhores de Marechal Hermes, e são realmente boas. Eu tenho uma família relativamente tranquila, mas ele não. Estamos fazendo as coisas de vagar, mas já não consigo mais dormir sem antes pensar no boa noite que ele me deu.

Dentro de você toca uma música boa, Joan.

Yuri Santos
Enviado por Yuri Santos em 15/11/2016
Reeditado em 18/11/2016
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