O GAIJIN

                                                                                                     

Sinceramente não faço idéia se o Carlos Drummond de Andrade era admirador de Sartre, Nietzsche ou qualquer outro filósofo adepto da filosofia nihilista. Mas que ele experimentou um sentimento de vazio perante a vida, em pelo menos um momento da sua existência, disso não tenho dúvida.
Ele também se sentiu o resto de um toco queimado que virou cinzas.

Ele também, um dia, já se sentiu um gaijin. Aliás, acho que todos nós já experimentamos algo assim. Um momento em que nenhum dos nossos sonhos, nenhum dos nossos projetos vale a pena as noites de insônia que passamos por eles. Um sentimento de que fomos expulsos do mundo, ou de que simplesmente fomos descarregados numa terra estrangeira onde ninguém sequer se digna a falar conosco. Isso é o que eu chamo de complexo do gaijin. E foi isso (pelo menos é o que eu senti), quando li o seu poema mais famoso: o "E agora José?"

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     Isso já aconteceu comigo. Foi há muito anos atrás. Por acaso, essa história tem muito a ver com o Drummond, por que foi nessa época que eu o conheci como poeta. Era a época que eu estava voltando para a escola. Explico. Deixei de estudar aos doze anos de idade quando terminei o antigo curso primário. Logo fui trabalhar como oficce-boy num escritório. Naquele tempo não precisávamos esperar fazer dezesseis anos para começar a trabalhar. O Ministério Público do Trabalho não dava em cima dos empresários por causa do trabalho do menor, os sindicalistas ainda não haviam transformado os sindicatos em lucrativas empresas familiares, os defensores dos direitos humanos ainda não confundiam liberdade com libertinagem e o trabalho precoce não era uma atividade perigosa para o desenvolvimento da juventude como se diz que é hoje. Para os nossos dignos defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente, vender drogas ou ficar nas esquinas sujando os pára-brisas dos automóveis com aquela água infecta e aquelas flanelas imundas não é perigoso, como também não é assaltar turistas e pessoas de idade nas praças e saídas dos bancos.
     Eu comecei, pois, a trabalhar com doze anos e me orgulho disso. O problema é que, por conta dessa precocidade eu não pude continuar os meus estudos. Também não me amarguro por isso, até porque não tinha mesmo condições para continuar. Naquele tempo, para se fazer o ginásio e o colégio, que hoje correspondem ao ensino secundário e médio, o aluno precisava fazer o que hoje nós chamamos de um autêntico vestibular. Primeiro ele tinha que passar um ano em um cursinho de admissão ao ginásio, depois fazer uma prova danada de difícil para conseguir uma vaga nas escolas do governo. Depois que terminava os quatro anos de ginásio era mais uma provação danada para fazer o chamado colégio. A gente tinha que escolher entre os cursos clássico ou científico. Clássico se pretendesse seguir as carreiras chamadas sociais: (magistério, direito, sociologia, etc.); científico se quisesse seguir uma carreira técnica como engenharia, medicina, odontologia etc.
       Naquele tempo não havia ENEN nem financiamento para bolsas-estudo nem as famílias probres ganhavam bolsas-familia. Entrar para uma universidade pública era quase impossível para uma pessoa pobre e para uma faculdade paga nem pensar. A minha família mal conseguia ganhar para comer. Então, o remédio foi ir trabalhar, esperando que um dia talvez a sorte mudasse e então...
        Esse dia chegou para mim aos vinte e cinco anos, no início dos anos setenta. Depois de chegar à conclusão que ser operário de fábrica a vida inteira ia ser uma existência bastante inglória, resolvi ir fazer um curso de madureza. Era uma coisa bastante puxada, ter que aprender em um ano o que normalmente se aprende em quatro. Mas eu consegui e menos de dois anos depois já estava cursando uma faculdade.
 
      Bom, o que isso tudo tem a ver com o Drummond e o sentimento de ser um gaijin no mundo? Tem que nesse curso de madureza que eu fui fazer havia uma japonesinha muito bonita que ganhou o meu coração desde o primeiro dia em que entrei na sala de aula. Eu já não era um garoto, mas romântico e sonhador, isso lá eu era. E eu tinha dois grandes sonhos nessa época. O primeiro era me formar em medicina. O segundo era me casar com a japinha. Como eu ia me tornar médico eu não sabia. Não tinha ideia de como iria pagar o meu curso, ou se fosse suficientemente inteligente para entrar numa faculdade do governo, como iria me sustentar, eu que, já nessa época, mal ganhava para comer.
      Mas eu sonhava com isso, talvez acreditando naquele provérbio popular que diz que quando você tem um bom propósito o universo inteiro conspira a seu favor.
      Quanto á japonesinha, nós namoramos durante uns três meses. Namoro é um modo de dizer. Devo reconhecer que ele nunca não passou de uns amassos atrás do muro da escola, nos quinze ou vinte minutos que antecedia as nossas aulas. Não sei por que (ou melhor, não sabia, mas descobri depois), ela nunca deixou que as coisas passassem disso. Eu não desconfiava de nada, uma vez que naqueles tempos moça direita era assim mesmo. Não deixava a gente nem encostar a mão nas intimidades, por isso eu me fiava na virtude dela e ia me conformando com aquelas migalhas de carinho, pensando no dia em que finalmente iria poder tomá-la nos braços, sem qualquer constrangimento, chutar a porta do quarto e deitá-la, com a mais delicada postura de um cavalheiro, na nossa perfumada cama para consumar um tão grande amor, que finalmente tinha chegado ao tão esperado dia.
 
     É, mas uma noite, quando eu a convidei para irmos para trás do muro ela recusou a minha mão e disse que queria falar sério comigo. Estranhei, porque para mim tudo que a gente tinha falado até aquele momento era sério. A nossa sensibilidade logo percebe quando alguma coisa ruim vai acontecer. Não precisa ninguém falar. Soube imediatamente que o nosso namoro ia acabar. Aliás, tem duas coisas que a gente sabe imediatamente que vai acontecer. É quando o patrão nos chama para conversar no escritório e quando o parceiro nos diz que quer discutir a relação. A gente sabe de cara que vai ser despedido ou que o caso terminou.
     Ela me disse simplesmente que não ia dar para continuarmos namorando porque ia ficar noiva.
     ─ Como, noiva? O seu namorado não sou eu? Nós não combinamos nada de noivado ainda, a que eu saiba ─ respondi, meio atoleimado.
     Não que eu não quisesse, eu até estava disposto a ficar noivo, era só a gente acertar, ela me levar para falar com os pais dela, conhecer a família, coisas assim que eram praxe naquele tempo. 
     ─Você não entendeu ─, disse ela. ─ O meu namorado de verdade voltou. Ele estava estudando medicina em Vassouras ─, disse ela. ─ Agora ele terminou o curso e voltou. Está fazendo residência na Santa Casa e nós resolvemos ficar noivos. Vamos nos casar assim que ele terminar a residência.
     ─ Namorado de verdade? Mas então eu sou seu namorado de mentira? Você só estava brincando comigo? ─ disse eu, já com uma raiva danada a avermelhar-me o rosto.
    Ela nem fez caso e respondeu candidamente.
      ─ Ah!, Você é muito legal e eu gosto muito de você. É que o Fuji (olha só o nome do cara) já está fora há mais de sete anos. Ele só vem em casa uma vez por mês. Ás vezes nem vem. A gente namora há mais de dez anos. Desde que eu tinha doze. Você sabe, é uma coisa de família. Ele é meu primo de segundo grau. Família japonesa tem disso. Eu nem já me lembrava mais.
     ─ E você ama esse cara? ─ perguntei, agora já não tão indignado, mas terrivelmente decepcionado.
     ─ Ah! Não sei ─ ela respondeu. ─ Mas é, como disse, coisa de família. Eu não posso desfazer assim.
     ─ E eu, como é que eu fico nisso tudo? ─ perguntei, com aquela cara de cachorro que caiu de uma mudança..
      ─ Ah! não era para você levar a sério ─ disse-me ela. ─ Nunca ia dar certo para nós. Afinal, você é gaijin.

     Então o cara já era médico e tinha roubado a minha japinha bonita. Ou melhor, tinha retomado o lugar que era dele por direito. Pior que perder a namorada foi sentir que o meu sonho tinha sido roubado. Ou melhor, que alguém tinha sonhado esse sonho antes de mim e já estava em plena etapa de realização enquanto eu ainda estava apenas sonhando. Aquele japonês desgraçado tinha me passado a perna. Azar meu. Naquela noite fiquei com dois problemas para resolver. O primeiro era descobrir o que era um gaijin. Não quis perguntar para ela, por dois motivos. O primeiro era que já estava muito puto da vida, e o segundo é que eu não estava disposto a aguentar mais um desaforo. E se gaijin fosse alguma coisa feia como marginal, filho de puta, corno, ou então algo depreciativo como miserável, fracassado, João Ninguém, ou coisa que o valha? Então preferi levar minha dúvida para casa e procurar no dicionário o significado do tal termo.
      O outro problema foi o trabalho que a professora de literatura nos deu para fazer naquela noite. Ela tinha mandado a gente ler e comentar o poema “E Agora José?” do Carlos Drummond de Andrade. Naquela noite, fui para casa fulo de raiva.     
      Estava decepcionado, com o coração dilacerado e ainda por cima tinha que comentar o “E Agora José?”, para levar no dia seguinte.                    
     Quando cheguei em casa naquela noite, a primeira coisa que fiz foi consultar o Aurélio; letra G, Gaijin. Procurei duas ou três vezes, não achei. Hoje tem, mas naquele tempo acho que essa palavra ainda não tinha sido incluída no dicionário.  Ou então eu estava tão descompensado que não vi. Nesses momentos, em que as emoções ruins tomam conta da nossa neurologia, os escotomas mentais são mais frequentes. As coisas estão na frente dos nossos olhos, mas a gente não vê.
     Naqueles tempos não havia Internet, com seus yahoos e googles. Que diabo era um gaijin?  O que não estivesse no Aurélio não estava no mundo. Deixei para mais tarde e fui para o “E Agora Josè?
                                              ♀

     A resenha que transcrevo abaixo foi baseada no trabalho que fiz naquela noite. Ás vezes, quando não são comprometedores, é bom guardar velhos escritos.

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta,
e agora, José?

 
    Eu não me chamo José, me chamo João, mas que diferença faz? Quem se importa se é João ou José, quando a festa acaba, a luz se apaga, o povo vai embora e só resta o frio da noite nos ossos, o desconsolo na alma e na sua frente uma rua vazia e lugar nenhum onde se queira ir? Pareceu-me que era isso que o poeta estava sentindo.


     Os primeiros versos caíram em cheio sobre mim, como se eu tivesse levado um soco no queixo. Parecia que o danado tinha escrito aquilo para mim. E os versos seguintes eram mais apropriados ainda. Pois era assim mesmo que eu me sentia. Um cara cuja terra tinha sido tirada de sob seus pés.
     Um gaijin. O termo que a japinha tinha usado ficou ali, indo e voltando como se fosse um importuno pernilongo. Será que gaijin queria dizer isso? Um cara sem nome, um ilustre nowwhere man, como naquela música dos Beatles, um desconhecido sem lar e sem pátria? Talvez fosse isso. Um sujeito de lugar algum, indo para lugar nenhum, sem eira nem beira, sem pátria, sem língua inteligível.

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber. 
já não pode fumar,
cuspir já não pode,


     Por coincidência eu estava mesmo sem mulher. A minha japonesinha me deixara, depois de confessar, com a maior cara de pau, que eu era apenas uma muleta que substituía a perna ausente dela, que ela chamava de Fuji. (E eu a perdera para um cara com esse nome). E se tivesse discurso não teria quem o escutasse. Estava sem carinho também. Na verdade, muito pouco carinho dela eu tivera. Agora entendia porque ela nunca me deixara passar daqueles amassos. Bem, eu podia cuspir, mas não fiz. Tinha aprendido que isso é falta de educação. Beber também não podia. Tinha que fazer o maldito trabalho. Não fosse essa idiota disposição que eu assumira, de levar a sério a minha vida dali em diante, eu teria parado em todos os bares abertos que encontrasse pelo caminho. Chegaria em casa lá pelas três da madruga, bêbado como um peru de reveillon e não sentiria mais nada até o dia seguinte, que até por ser dia seguinte, sempre é outro dia. Mas não foi o que aconteceu. Eu tentei decifrar o maldito poema e quanto mais o lia mais ele parecia ter sido escrito para mim.
 
A noite esfriou,

o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

 
     É. Esse foi o sentimento daquela noite. Parecia mesmo que o novo dia não ia chegar nunca. E que eu havia perdido o bonde da vida. Nenhuma vontade de rir, desejo mesmo de chorar, mas e a vergonha? Vontade de se matar, mas e a coragem? A utopia, que era me ver vestido de branco e chegar em casa depois do plantão no hospital, naquela casinha bonitinha que imaginei, pintada de azul, com uma sacadinha em frente à janela, naquela rua do bairro da Boa Vista, em frente daquela praça florida e limpinha, e ela, a minha japinha, me esperando vestida com aquele quimono de seda, toda gueixa, com o suchi e o saximi prontos, o chá fumegando naquela xícara de porcelana pintada com aqueles motivos orientais, tão singelos, não era mais que isso mesmo. Uma utopia.


   Bah! O que restou foi aquele gosto amargo de toca de jacaré na boca, e um imenso vazio à minha frente, que eu não sabia agora como iria preencher. Cheiro de mofo nas paredes. Ou esse cheiro vinha de dentro de mim?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?


    Sim. Era tudo isso mesmo. O bobão que eu era decorara poesias para dizer para ela. Aprendera de cor alguns versos do Kalil Gibran. “Quando o amor vos chamar/ segui-o, mesmo que seus caminhos sejam agrestres e escarpados. Quando ele vos chamar ouvi-o/ mesmo que sua voz possa despedaçar-vos o coração. Quando ele vos cobrir com suas asas/ cedei-lhe, mesmo que a espada oculta em sua plumagem possa ferir-vos. Pois da mesma forma que ele vos coroa/ ele vos crucifica, e assim como ele sobe à vossa altura/ para acariciar os vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol/ ele desce ás vossas raízes para sacudi-las no seu apego à terra.”

      Os versos que eu dizia para ela eram meus instantes de febre, que ela recompensava com uma terna caricia no meu rosto. Não passava disso. E quando eu tentava beijá-la, ela dizia que ainda era cedo para isso. Na minha gula eu passava o maior jejum. E me comprazia em pensar que era tudo por causa da virtude dela.
      E tinha também a minha biblioteca. Todo troquinho que me sobrava das despesas com a vida eu investia em livros. Comprava, não só os livros necessários para estudar as matérias que estava cursando, mas já adquirira essa minha compulsão pela leitura. Comprava livros de poesias, romances e até alguns de medicina. Estava já me preparando para a realização do meu sonho.
     Ah! Sim, o terno de vidro também já tinha. Era o meu velho terno preto que eu comprara a prestação para o casamento da minha irmã. Depois de três anos de uso, as múltiplas lavagens, escovações e passadas a ferro o transformaram numa brilhante fatiota onde eu podia ver o reflexo do meu rosto. E quanto ao ódio, sim, isso era tudo que eu sentia naquela noite.


     Eu agora estava ficando com medo. Será que o Drummond tivera uma premonição? Será que ele me viu com trinta anos de antecedência, com as mãos na cabeça me perguntando "E agora João?" Fiquei em dúvida se devia continuar lendo o poema. E se ele terminasse em uma tragédia?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
 
    Isso também tinha sentido. Eu chegara em casa tão desorientado naquela noite que enfiei a chave na fechadura com tanta raiva que ela quebrou dentro do miolo. Era quase meia noite e minha mãe estava dormindo. Depois de uma meia hora tentando acordá-la, parti para a ignorância. Tentei entrar como se não existisse mesmo porta. Dei de ombro contra ela, como fazem aqueles mocinhos do cinema americano. Mas porta brasileira é macho, e ela me encarou. Ficou ali, incólume e altaneira, imune aos meus problemas, enquanto eu me estatelava no chão feito um saco de batatas podres.

     Só então minha mãe acordou, conseguiu abrir a porta por dentro e eu entrei, entre dolorido e envergonhado, olhando para todos os lados para ver se ninguém  presenciara o vexame que eu dera com o meu rompante de John Wayne. 
     Meio desmaiado, muito envergonhado e bastante dolorido, ela me levou para dentro e passou mertiolate e mercúrio no cotovelo que eu raspara na queda. Depois tomei um banho frio e ela me fez um café  bem forte. Minha mãe era uma santa. Pelo menos eu tinha uma mãe. O Drummond talvez não tivesse quando escreveu aqueles malditos versos mefistofélicos. 
    Só uma coisa não deu para encaixar nesse meu momento de desesperança: foi o negócio de querer morrer no mar. Isso eu nunca quis. Morrer afogado deve ser muito dolorido. Quando moleque eu vira um colega meu se afogando numa lagoa que havia no Tietê. Costumávamos fazer isso às vezes. Cabular a aula para ir na Lagoinha nadar. Parece que todos os moleques da cidade faziam isso. Pelo menos era lá que todos nos encontrávamos. Não, decididamente morrer afogado era uma coisa muito ruim. O cara parecia uma daquelas galinhas que a minha mãe matava destroncando o pescoço.  Sincopizava, tentando chupar um ar que não passava pela garganta.
     Pensei que seria melhor prender a respiração até que o pulmão estourasse. Não deu. Quando comecei a ficar vermelho desisti. Cortar os pulsos também era coisa que não prestava. Fazia muita sujeira. Eu via o lençol da minha cama todo ensanguentado e sentia náuseas. Não, decididamente, era preciso achar um meio mais limpo e menos dolorido de morrer. Um tiro na cabeça era impensável. Não tinha nem arma de fogo em casa. Enforcar-me era ideia repugnante. Dizem que o enforcado solta tudo que tem nos intestinos na hora de morrer. Credo. Imaginei o fedor que isso exalar e expulsei de pronto o pensamento como se expulsa um pernilongo incômodo.


     Não, morrer não dava não. Por outro lado eu não era mineiro como o Drummond,.Sou caipira de Cunha. Nunca desejei ir para Minas, a não ser para visitar Ouro Preto e as cidades do ciclo do ouro. Sou romântico e tenho atração glandular por essas antiguidades. Uma das minhas fantasias favoritas era imaginar ter participado da Inconfidência Mineira e fazer com que ela tivesse dado certo. Adoraria ter dado uma surra no Joaquim Silvério dos Reis, amaria ter conhecido o Tomás Antônio Gonzaga e saber se a Maria Domitila (a doce Marília) era mesmo tão bonita como ele a pintou em seus bucólicos poemas arcadianos. Gostaria de ter conhecido o Tiradentes e participar dos saraus literários na casa da Bárbara Heliodora.
    A minha doce e não menos bucólica Cunha ainda existe, mas lá não sobrou nada para mim. Por isso não dava para voltar para lá. O pedacinho de terra que o meu falecido pai tinha na Serra da Bocaina, um dos meus tios que ficou lá plantando roças de milho e feijão fez usucapião dela e agora é o único que tem escritura por aquelas bandas.

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!


     Não, gritar eu não gritei. Achei que seria ridículo se o fizesse. Afinal, que iriam dizer de um cara que fica gritando de madrugada? Pensariam que fiquei louco. Iria parar em Franco da Rocha, atado numa camisa de força. Gemer, eu acho que gemi. Minha mãe disse que sim. Que eu gemi e bufei. Falei um monte de coisas dormindo. Acredito que também babei. O lençol estava emporcalhado pela manhã. Ela achou que eu tinha tomado todas, mas não tinha mesmo bebido nem uma gota. Porre de amor e ressaca de chega-para-lá de mulher é pior que uma noitada regada à pinga das mais vagabundas.
     Valsa vienense eu nem gostava naquele tempo. Hoje gosto. Também nem tinha para tocar. Só possuía uns velhos long-plays do Altemar Dutra e alguns discos do Roberto Carlos. Mas eram todos de música dor de cotovelo. Além do adiantado da hora, tocar aquelas músicas numa casa de paredes meias não ia prestar. Além do que, falavam dos desgostos dos outros e iriam apenas aumentar o meu.
     O recurso era mesmo dormir. Dormi, sonhei. Estava voando como um pássaro. Ou melhor, não como um pássaro, mas como um balão de gás. Subia, subia, cada vez mais alto. Olhava para baixo, na terra, e via uma turba furiosa correndo atrás de mim. Sentia-me como uma pipa cuja linha se partiu. O vento me levava cada vez mais alto e para mais longe. A turba continuava lá em baixo, mas eu estava lá em cima. Não podiam me pegar. Se pegassem eu sei que me rasgariam. Isso me apavorava. De repente pareceu que o ar que me enchia começava a escapar. Eu me sentia mais leve, e no entanto, parecia que estava mais pesado. Comecei a cair. A distância entre eu e a turba feroz foi diminuindo. Em instantes ela parecia estar roçando nos meus calcanhares. E a turba gritando, pega o gaijin, pega o gaijin.
    
      Acordei. Então gaijin é isso? Uma pipa, um balão de gás? Quis a minha ex japinha dizer que eu era um sujeito vazio, ou então um fanfarrão cheio de gás, que é o mesmo que dizer que eu era apenas alguém que sonhava alto, mas jamais iria a lugar algum? E por isso ela preferia ficar com alguém que estivesse com um pé na terra?

     Podia ser. Sempre tive o maior respeito pelos sonhos. Eles são mensagens codificadas. Por isso anotei tudo e voltei a dormir. No dia seguinte poderia tirar tudo a limpo.

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

 
      Queria o meu sonho dizer exatamente o que o Drummond tinha dito? Que eu era um balão solto no ar, um bicho-do-mato, sem educação, sem eira nem beira, sem futuro? Era isso um gaijin? Um cara que não tem um lugar para cair morto, que é o mesmo que não ter parede nua para se encostar, que é o mesmo que ser um quadro, mesmo bonito, mas que não encontra parede para ser pendurado, ou então alguém que não tem mesmo um lugar para ir?

       Eu precisava saber o que era um gaijin. Se não, eu iria ficar com a poesia do Drummond da cabeça e com certeza ia me sentir um José para sempre, coisa que eu não queria mesmo. A japinha era linda, era meiga, era gentil, mas ela não valia tanto. Não tanto a ponto de eu passar o resto da minha vida se sentindo um toco que queimou até virar um monte de cinzas. Nem queria ficar mais me perguntando "E Agora João?"   
                             
                                               ♀


     No dia seguinte a primeira coisa que fiz foi procurar o Sakuma. O Sakuma era um senhor japonês que trabalhava na mesma fábrica que eu. Era um cara meio enfezado, muito mal humorado e de poucas palavras. Mas tinha dons professorais. Gostava de ensinar. Foi ele que me ensinou a operar a máquina furadeira nos meus primeiros dias de fábrica. A gente se dava bem.
    Perguntei-lhe o que era um gaijin. 

    ─ Porque quer saber isso?─ perguntou-me ele, meio desconfiado.
     Contei-lhe a história da japonesinha e das minhas angústias da noite anterior. Ele riu. Foi a primeira vez que o vi rindo. 
     ─ Gaijin quer dizer estrangeiro, seu bobo. É uma pessoa que não é da mesma raça que você, que fala língua diferente, não tem a mesma cultura. Você é um gaijin para nós, japoneses, e eu sou um gaijin para vocês, brasileiros.

     Então entendi. Gaijo, gaijão, os ciganos também chamam os não ciganos assim. Os portugueses também. Quando querem depreciar alguém eles falam: Ora pois, esse gaijo...
    Tudo tinha a ver. Nas relações mais profundas que o meu cérebro estabelecera entre o fora que eu levei da japinha, o poema do Drummond, os meus sonhos, esperanças e temores, havia um ponto de conexão e ele se chamava gaijin. Eu era um estrangeiro no mundo da minha japonesinha, como também um estrangeiro no mundo dos meus próprios sonhos, já que eu não sabia falar a língua deles nem conhecia o caminho para entrar neles de verdade. Eu era um estrangeiro na vida que eu queria de fato entrar. Por isso me sentia como um José de quem tudo fora tirado e não tinha um lugar para onde ir. Um toco que se queimara até virar um monte de cinzas.Essa era a minha conexão com tudo isso, e eu me via agora, não mais como um namorado enjeitado nem um romântico idiota se identificando com um poema. Vi que eu era apenas alguém que precisava aprender os códigos de ingresso nessa vida que eu sonhava viver. Nela encontraria a minha própria japinha, a minha própria língua, o meu povo, a minha cultura, e não seria mais um estrangeiro sonhando em voar alto, mas sem gás para ir a lugar algum.
     Foi então que, ao invés de procurar um cavalo preto para fugir a galope, (desejo expresso pelo Drummond no seu poema), eu decidi que não, que eu jamais iria fugir de coisa alguma. Para mais nada nem para ninguém eu iria ser gaijin. Nem nada nem ninguém iria ser gaijin para mim. Eu iria aprender os códigos de inserção que me permitiriam entrar em qualquer mundo, tivesse ele o que tivesse de diferente do meu.

     Esses códigos se chamam educação, trabalho, dedicação, comprometimento, e sobretudo, amor e aceitação do mundo alheio. Esses códigos são mais fortes do que sangue, cultura, cor da pele, idioma ou outro qualquer diferencial que  o nosso frágil ego desenvolve para tentar nos proteger daquilo que não se parece conosco. Eles são a linguagem universal e podem ser entendidos em qualquer canto do mundo. Graças a Deus eu não adquirira o Complexo do José, aquela doença que já matou muitos poetas, e que se manifesta por um incurável pessimismo e uma terrível inadequação para lidar com os maus resultados que a vida nos trás. Ao contrário, provocou em mim o Efeito Fênix, aquele que faz um ser renascer das suas próprias cinzas.
 
    Ao escrever este texto me deu uma baita saudade da minha querida japonesinha. Estimo que ela seja muito feliz com o Fuji. (O nome já não me parece tão estranho agora. Conheci outros indivíduos com esse nome pela vida afora. Tenho até dois bons amigos que se chamam assim). Quanto ao Drummond, mantenho-o até hoje junto à minha cabeceira. Leio “E Agora José?” e só vejo nele uma bela e fundamental experiência poética.