AMNÉSIA

Estava sendo um dia até bom. Na verdade, excepcional, tendo em vista os últimos meses. No serviço as coisas deram todas certas; me diverti com meus filhos, sem a mais velha bancar a "aborrescente", nem o mais novo o "mãezinha". Até consegui não discutir com a esposa. Hoje em dia isso é quase um milagre. Devia ter pego um livro na estante ou alguns dos relatórios do trabalho. Ou mesmo ter ficado vagabundeando na internet. Mas não! O idiota aqui tinha que ligar a TV! E lá estava ele. Ainda nos créditos iniciais. De todos os canais que tenho à disposição, de todos os filmes que poderiam estar passando, precisava ser justamente este! Amnésia, de Christopher Nolan!

Cena patética, um homem de quarenta anos suando frio em frente do televisor, as mãos tremendo enquanto segurava o controle remoto. Queria desligar ou mudar de canal, mas não consegui. Porque associo tanto este filme com ela? Nunca assistimos juntos. Será que sabia que nunca conseguiria esquecê-la? Sempre dizia que o destino dela era glorioso e o meu era me tornar um pequeno burguês com uma casa no subúrbio, cachorro e piscina de vinil. Hoje ela é docente de uma universidade federal e o Rex, meu labrador, vem me cumprimentar sempre que chego. Conto os tostões para consertar a bomba da "banheira" que tenho no quintal. Ao que parece sofro a maldição de Cassandra. Ninguém acredita nas minhas previsões, nem mesmo eu.

Talvez essa obra me emocione tanto porque sempre soube que a amava demais. Que ela acabaria fazendo parte de mim. O filme tem uma estrutura incomum, de trás para frente. O protagonista procura o assassino da sua esposa. Só que ele sofre de perda de memória recente. Sabe quem foi, mas não têm certeza sobre quem se transformou. É um trabalho excepcional. Discute o quanto do que nós somos depende daquilo do que lembramos e do que acreditamos. Pode ser isso. A desculpa que sempre usei para mim mesmo para não me separar foi que não daria certo porque havia profecias vindas da igreja da minha esposa que confirmavam nosso casamento. Mas a verdade é que sentia um ciúmes doentio da outra, uma insegurança medonha. Tinha uma certeza apavorante de que se a escolhesse, ela me abandonaria mais cedo ou mais tarde. Por mais que gostasse e goste da minha muher, nunca senti nada que fosse levemente parecido. Foi isso que me fez "dar para trás" nos momentos cruciais. Mas na maior parte do tempo "esqueço" disso. Assim como coloco quase inconscientemente a culpa da maioria dos meus fracassos na vida nesse romance. É até cômico: "Tornei- me um ébrio na bebida posto a esquecer, aquela ingrata que eu amava e que me abandonou..."

Este "imbróglio" durou uns cinco anos. Os melhores e piores momentos da minha vida. No final só conseguia pensar nos últimos. Hoje só me lembro dos primeiros. O personagem principal do filme tatuava no corpo o que não queria esquecer. Outra ironia. Ela sempre cantava "Tatuagem", da Elis Regina. Dizia que era o que sentia por mim. Em parte conseguiu: "... Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva; marcada a frio, ferro e fogo; em carne viva..."

Me sinto um hipocrita, pois já ajudei várias pessoas a permanecerem com suas esposas. Nossa, como eles me agradecem. Mas em segredo morro de inveja do meu sobrinho que largou a mulher e os filhos para ficar com uma "Paquita" de bunda grande, seios maiores ainda e um cérebro de ostra. Mas o que sinto não é só pelas "qualidades" da nova namorada. A ex esposa dele é uma mulher madura, centrada. Enquanto ele é um moleque, imaturo mesmo já sendo um homem. Não devia ser fácil. Minha amante era extremamente inteligente e instruída. Eram noites de paixão intermeadas por filosofia, política e música clássica. Os ídolos da minha mulher são Zezé de Camargo e Luciano e ela pede para não ficar falando sobre literatura ou assuntos parecidos com a família dela, pois eu me torno chato. Ela tem inúmeras outras qualidades, mas...

Começa a passar a cena mais difícil para mim. O protagonista está queimando alguns objetos da esposa falecida e diz:

"Já devo ter queimado uma tonelada de coisas suas. Por mais que eu tente não consigo me lembrar de te esquecer"

Comecei a chorar compulsivamente e tive que tomar cinco calmantes para dormir.

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 07/01/2017
Reeditado em 15/01/2017
Código do texto: T5875008
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