(Imagem Google)



Magia da Folia do Divino


 
 
Inocência era a candura em pessoa, uma menina moça, de lindos olhos azuis, educada à moda antiga, sem grandes sonhos e pretensões, a não  ser se casar, ter filhos e cuidar da família. Desde cedo aprendeu que para ser uma boa esposa tinha que ser prendada, saber bordar, costurar, cuidar da casa, lavar, passar, cozinhar, educar os filhos dentro dos preceitos religiosos e obedecer ao marido. Era assim com ela e com todas as mulheres daquela família, por várias gerações.

Visitar a madrinha, Helena, que morava no interior de São Paulo, era o único passeio que lhe era permitido pelos pais e a esta era dada a responsabilidade de vigilância para conservar os princípios e valores recebidos.

Em uma dessas visitas, após o jantar, Helena e Inocência foram para a varanda, tomar a fresca da noite e conversavam sobre amenidades quando a madrinha lhe fez uma observação:
"Inocência, você já está com quinze anos e  já está passando a idade de se casar" (naquela época , normalmente, as meninas se casavam aos treze anos de idade). A menina respondeu, sorridente, que não tinha nenhum pretendente nem seus pais haviam cogitado ainda um casamento arranjado, como era o costume da época.

Helena, então, em tom de brincadeira, lhe sugeriu: “
Por que você não faz uma sortinha de São João, aproveitando que está chegando o dia do nosso padroeiro?"  “Se for feita com fé, você verá no espelho o homem com quem irá se casar”. Inocência, como toda menina da sua idade, era sonhadora, acreditava em amor eterno e sonhava se casar com um homem pelo qual se apaixonasse.

Seguindo as orientações da madrinha, resolveu que faria essa experiência e na véspera de São João, comprou um espelho pequeno (era imprescindível não deixar que sua imagem se refletisse nele antes da meia noite), vela branca e uma caixa de fósforos (todos virgens). O ritual mandava que a pessoa teria que ir sozinha do lado de fora da casa, à meia noite, acender a vela com o fósforo e fazer uma oração ao santo pedindo que lhe mostrasse no espelho  o rosto do futuro marido, porém, se não fosse esse o seu destino, outras imagens poderiam aparecer, inclusive, a de um caixão, o que significaria morte.

Ao pensar nessa possibilidade, um frio lhe percorreu a espinha, ficou com medo e pensou em desistir. Foi para a cama, mas não conseguia relaxar e o sono somente chegou quando resolveu acender a vela, no criado mudo que ficava na cabeceira da sua cama, deixou o espelho ao lado da vela e rezou com muita fé e devoção para que São João lhe mostrasse, mas em sonho, o rosto do seu futuro marido.

Inocência teve um sonho lindo. Sonhou com um moço muito bonito,  montado em um  cavalo branco, levando na cabeça um chapéu, um lenço vermelho amarrado no pescoço e tinha um sorriso encantador.

Essa imagem ficou gravada em sua memória e quando a descreveu, na manhã seguinte, para a sua madrinha, era como se revivesse aquele sonho que tanto a havia impressionado.

Um sonho apenas, pensava Inocência, pois um ano se passou e nada aconteceu. A menina perdeu as esperanças e ficou a mercê do seu destino, voltando às tarefas do seu cotidiano.

Inocência costumava visitar a madrinha, normalmente em festas tradicionais e folclóricas da cidade, e já se aproximavam as festividades da Festa do Divino, realizada sete semanas depois do Domingo de Páscoa, no dia de Pentecostes, para comemorar a descida do Espírito Santo sobre os doze apóstolos.

A origem da Festa do Divino se encontra em Portugal do século 14, com uma celebração estabelecida pela rainha Isabel (1271-1336) por ocasião da construção da igreja do Espírito Santo, na cidade de Alenquer. A devoção se difundiu rapidamente e tornou-se uma das mais intensas e populares em Portugal. Por isso, chegou ao Brasil com os primeiros povoadores. Há documentos que atestam a realização da festa do Divino em diversas localidades brasileiras desde os séculos 17 e 18.

Para arrecadar os recursos de organização da festa, fazia-se antecipadamente a Folia do Divino: grupos de cantadores visitavam as casas dos fiéis para pedir donativos e todo tipo de auxílio. Levavam com eles a Bandeira do Divino, ilustrada pela Pomba que simbolizava o Espírito Santo e era recebida com grande devoção em toda a parte. Levavam alegria, e não economizavam nos adereços, cantavam e iam embora.
 
Helena havia preparado a sua casa para receber os cantadores e Inocência apreciava a cantoria, sentada na varanda da casa, enquanto fazia o seu crochê.

Lá estavam eles, agora, cantando e reverenciando a bandeira, quando Inocência sentiu sobre ela um olhar que a fez interromper seu trabalho manual e virar-se para o lado. Por um momento teve a sensação que iria desmaiar...era ele...o moço bonito montado em um  cavalo branco, levando na cabeça um chapéu  e um lenço vermelho amarrado no pescoço, com um sorriso encantador...o moço estava ali, diante dos seus olhos como que saído do seu sonho. Ele sorria para ela, estático, como uma miragem e, saindo daquele transe mágico, desceu do cavalo como que se fazendo movimentos caracterizasse que não era uma miragem, mas não entrou, como os outros, apenas ficou lá parado, olhando-a, até que o ritual folclórico terminasse e, então, foi embora com o grupo, sem nada dizer.

Inocência, num misto de alegria e dor, ficou a sonhar com aquele homem que havia tocado o seu coração, sem saber que o universo conspirava a seu favor...assim estava escrito.

Oito dias haviam se passado quando o pai de Inocência recebeu uma carta do moço do seu sonho, pedindo-a em casamento.

Assim cumpriu-se o destino e Inocência casou-se com Joaquim, o homem que lhe foi revelado em sonho e que a fez a mulher mais feliz do mundo por catorze anos. Dessa união nasceram seus sete filhos, todos frutos de um grande amor.

Essa felicidade, porém, durou pouco. Inocência ficou viúva aos trinta anos de idade. Joaquim foi acometido de pneumonia  e o quadro evoluiu devido a falta de recursos e assistência precária da região. À esposa ficou a incumbência e responsabilidade de continuar a criação dos filhos, o que fez com muito sacrifício e dedicação.

Parentes se ofereceram para ajudá-la, tendo em vista as suas dificuldades e vicissitudes da vida, mas Inocência não aceitou a separação dos filhos, era uma guerreira e queria a família unida a qualquer custo. Isso a fez amada e respeitada por todos que a conheceram, principalmente pelos filhos, os quais foram criados dentro de seus princípios e valores.

Inocência era ainda muito jovem e não lhe faltaram pedidos de casamentos, os quais foram todos recusados. O seu amor por Joaquim, dizia, era eterno e jamais permitiria que outro homem ocupasse o seu lugar em seu coração. Acreditava que um dia se reencontrariam na eternidade, só pedia a Deus que lhe desse tempo para criar os seus filhos e os fazerem pessoas de bem.

A vida castigou aquela família, de escassos recursos, trabalhando na lavoura, sofrendo as intempéries do tempo e toda sorte de privações, inclusive fome e frio. Nem todos tiveram oportunidade de estudar ou concluir o primeiro grau, devido as responsabilidades da vida do campo, mas Inocência  venceu todas as barreiras, junto dos filhos que amava. 

Lembrava, com saudade, da felicidade que viveu junto ao seu marido e isso a reconfortava e a estimulava a continuar lutando, sempre disposta e otimista, acreditando em dias melhores, até seu último e derradeiro suspiro.


Assim, minha bisavó materna, Inocência, se despediu desse mundo, ainda jovem,  e foi ao encontro do seu amado Joaquim, meu bisavô.  A esperança, a seu tempo, não se perdeu no caminho desse espaço, antes intransponível, para levá-la ao encontro do seu amor, que a aguardava com carinho para recomeçarem uma nova história, quiçá de alegria e felicidade eternas.

Deixou um legado de amor, carinho, respeito e sentido de família e partiu para outra dimensão com a certeza do dever cumprido. Cada um de seus filhos seguiu um caminho diferente, dignamente, construindo suas histórias, alguns perdendo-se dos outros pelas próprias escolhas, muitas delas compulsórias, mas com uma base inabalável...o amor incondicional dos seus pais.

A magia estava na Folia do Divino!

 




 
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Lucia Moraës
Enviado por Lucia Moraës em 16/01/2017
Reeditado em 05/06/2019
Código do texto: T5884048
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