Ninguém é Proust

Ninguém é Proust

Era Madalena. O nome do bolinho que trouxe à recordação o narrador de Proust. Por que lhe veio essa invocação exatamente naquele instante em que devia estar prestando atenção no que a inspetora falava, falava, de modo pausado e didático, objetivo sem deixar os circunlóquios? É que mordeu a Ana Maria. Aqui era Ana Maria, pensou depois, esquecida completamente da pauta da reunião pedagógica, uma mão no volante, outra na alavanca de freio, e a estrada, os outros automóveis a frente mostrando seus traseiros imponentes bufando fumaça, e aquilo lhe provocou um riso estranho antes que olhasse através das lentes escuras dos seus óculos a mudança de cor do semáforo.

As gêmeas estavam na escola. Era preciso busca-las se Leonardo não já fora. Ele tinha mais tempo. Tazio, seu belo Tazio, ah, não gostava dele vindo sozinho, mesmo que o colégio não fosse tão longe, e uma e outra menina o acompanhava.

Sobre o vidro límpido da mesa, os carnês já para vencer, as rosas artificiais dentro de um jarro desabrochando inertes e refletindo sobre o vidro nítido da mesa. A casa guardava uma atmosfera de limpeza e organização, de silêncio com ecos longínquos de ruídos que vinham do subúrbio quente. A mancha coalhada de sol oscilava sobre a parede rósea ao balanço da cortina. Virgínia apressou-se mordendo os lábios freneticamente. Às vezes era preciso certa violência consigo mesma, pois abstraia-se de tal forma e atirava as pastas com brutalidade sobre o sofá, mesmo que sempre reclamasse com Leonardo, Tazio ou as gêmeas quando dessa atitude. E abriu a porta do quarto assim com uma força de quem tivesse susto de encontrar ali dentro um invasor, e lá estava os moveis estáveis e confortáveis na penumbra perfumada e empoeirada, a sua cama larga e forrada, onde há mais de quinze anos dormia com Leonardo. O que sabia dele, além de que era um agente da polícia civil e sempre tivera aquele modo peculiar de falar com o riso dos músculos da face quadrada? O distintivo, às vezes, ela admirava abstraída, quando ele no banho, falava com ela do banheiro, sabendo ela sentada na cama de costas para a porta entreaberta, e admirava como se admirasse ele, ou se o distintivo dele falasse mais dele do que ele naquele jeito de quem olha sorrindo com todos os músculos da face.

_Olá, ouviu a voz dele lá na sala, e as risadas ofegantes das meninas, e voltou para sala, aturdida, pegando as pastas sobre o sofá, sorrindo sonsa, permitindo-se a um beijo do marido na frente das duas meninas parecidas, de rosto compridos e cabelos loiros.

Depois que ajeitou as meninas no banho, voltou-se para Leonardo, que já se virava na cozinha, pondo as panelas no fogo para esquentar os restos de ontem e mordendo muito os lábios, torcendo as mãos, sugeriu que fosse buscar Tazio na escola.

_Ele já deve estar vindo, respondeu de costas para ela, ele sempre vem sozinho...

_Ah, Leo, não gosto de Tazio vindo sozinho...

Aquele cicio de riso. Ela podia adivinhar os músculos da face dele.

_Mas é perto demais, e depois Tazio já tá bem grandinho. Não se pode ficar tratando este menino a vida toda como um bebezinho.

Virgínia riu enfraquecida. Como trata-lo como um bebezinho? Não era necessariamente disso que se tratava seu zelo, sim do contrário a isso. Era por Tazio não se tratar mesmo mais de um bebezinho, pois...

_Ontem eu vi um homem estranho conversando com o Tazio aqui na esquina, comentou ofegante enquanto ele levantava a tampa da panela.

_Homem estranho, como assim homem estranho? Perguntou Leonardo voltando-se, os maxilares contraídos. Até forçando a fisionomia séria ele sorria em músculos da face.

_Um homem estranho... um homem estranho, Leo. Você não sabe o que é um homem estranho? Desabafou num modo enfarado, puxando uma cadeira e sentando-se com as mãos a tamborilar sobre a mesa.

Ele a serviu um prato, sorrindo todo músculos da face. Homem estranho em que sentido? Estranho, que eles não conheciam, ou estranho do que eles entendiam como gente de bem.

Na verdade, era um rapaz negro e Virgínia não queria destacar precisamente esta característica como “estranho”.

_Sei que não é bom... não é bom... não é bom, o Tazio ficar andando por aí sozinho – afastou o prato que ele lhe servira, levantou-se em direção ao quarto das meninas ainda falando que viviam numa cidade perigosa, ele mesmo sendo policial devia saber disso.

Tazio passava horas da tarde em seu quarto, mexendo em seu computador, embaralhado com jogos, ou ouvindo música, às vezes vindo a janela. Sorria fácil e enrubescido na face de um marmóreo translucido, mexendo nos cabelos de pontas longas e aneladas que lhe vinham aos olhos, para o homem, que lá na calçada, àquela hora recolhia os volumes das lixeiras em torno. Ele ia e vinha arrastando as botas pesadas, o uniforme de um laranja berrante e encardido. Gritava alto aos risos quando o caminhão se aproximava, atirava tudo que recolhera na traseira acoplada deste e se dependurava ágil a partir com o caminhão. Agora tinha se sentado sobre a sombra do edifício, bem abaixo da janela do quarto de Tazio. Podia-lhe ver a sombra desenhada na calçada e até adivinhar os movimentos e adiante o carrinho, que ele arrastava, parado, a vassoura enorme e a pá emborcadas dentro dele.

Tazio dependurou-se mais na janela e pode ver as botas dele, um pouco das mãos que esfregava as canelas, sim. Suspirou, voltou-se para dentro do quarto. Pelo corredor ouvia-se as risadas das irmãs correndo, em seguida a voz autoritária e serena da mãe:

_Talita e Tamise...

Se descesse, pensou roendo de leve as unhas. No peito ardia qualquer coisa. Sheine tinha lhe passado o bastão de batom líquido. Mas era vinte Reais. Arranjo o dinheiro, falou puxando da mão dela com uma petulância. E se experimentasse agora, e já se admirava de todo no espelho do guarda-roupa. Esguio, comprido, de cabelos longos e pontas aneladas, de um loiro dourado, os olhos tão claros. As pernas de Max, tinha sido bom esfregar-se nelas ali mesmo em seu quarto. Era preciso que não se chocasse. Sabia como era difícil. Abaixou os olhos. Lá na praia, aquela vez, o velho o olhava da areia, em sua espreguiçadeira. Olhava, olhava, olhava. Olhar e olhar demais é admirar. A mulher também o olhara assim, enquanto no supermercado com a mãe, de outra vez a mão tocando em seu queixo naquela confissão que sempre o enrubescia de vaidade:

_Mas é um menino tão lindo este seu Tazio...

Os lábios róseos agora brilhavam mais rosa, intenso. Se o pai visse... pensou subversivo e deliciado.

Chegando ao portão, o sol tinia morno sobre a chapa de aço. Os automóveis, mais adiante, rareavam, pela hora descansada; as dunas de concretos já eram disputadas por garotos em rasgos verbais transgressivos e risadas doidas, rolando de skate. Um deles, o rosto moreno oculto sobre a aba larga do boné, parecia fita-lo com escárnio. Virou o rosto arrogantemente e voltou-se para o homem sentado na sua calçada. Ele descansava de rosto baixo sobre os braços apoiados nos joelhos. Queria gravar-lhe o rosto além daquele sorriso que lhe dera antes, só que o perturbava por dentro aproximar-se, como se o chão de cimento agora fosse chumbo derretendo-se.

Ele levantou os olhos, um sorriso interrogativo. Tazio sentiu um calor interior subindo-lhe, o coração batia tão forte que lhe sufocava as palavras.

Por dentro, o homem chegava enfim a conclusão. Era um garoto. Um rapazinho. Já não tinha nenhuma dúvida. A beleza andrógina realçava-se ainda mais pelo brilho acentuado que tinha nos lábios, o modo sinuoso como se aproximava, embora se vestisse precisamente como um garoto.

_Você...você... tá triste? Perguntou afinal hesitando tremulo na voz, Tazio, porem com um sorrisinho cínico de peraltice.

O homem riu, esfregou a manopla no rosto. Tazio observava-lhe atentamente, e percebia as mãos fortes do trabalhador tão em proporção com os braços.

_Não, não, respondeu firmemente, tô só descansando um pouco...

Tazio fitava-o. O homem o encarava. Um belo rosto negro, de olhos vivos, lábios carnudos, que lhe sorria dissimulado, não querendo entender aquela aproximação que se fazia gradativamente.

_Eu moro aqui, hem – informou Tazio os olhos se virando sonsos – se precisar de... alguma coisa...

O homem se levantou num salto. Alto, forte, um sorriso disfarçado no rosto. Suspirou resfolegante e voltando ao seu carrinho como num gesto de defesa, disse abaixando os olhos:

_Não... não, tranquilo... tá suave... – e testou a vassoura no cimento seco da calçada, enquanto sentia que o rapazinho andrógino se aproximava. Evitou fita-lo, fingindo-se distraído com a vassoura e sentia a respiração e a emanação quente e perfumada dele quase no seu braço.

_Você mora por aqui? Perguntou Tazio num arfar de peito que lhe deixara o rosto ainda mais ardendo ao sol.

O trabalhador continuava com os olhos baixos como se concentrasse em consertar a vassoura, mas lhe escapava um riso malandro e debochado de quem entendia aonde aquilo queria chegar.

_Moro lá no Beco do Rebuliço, respondeu num grande suspiro, percebendo que os olhos do rapazinho estavam atentos aos seus movimentos, como o que a mão dele coçou entre as pernas.

_É longe? Interessou-se a enrolar anéis das pontas dos cabelos entre os dedos, Tazio, percebendo que os garotos que rolavam de skate como que prestavam atenção em sua conversa, mas ante a um grito alucinado e lancinante de riso de um ao ver o outro se esborrachar no asfalto, Tazio pode esquecê-los.

_Um pouco, respondeu o gari num leve tom de má vontade, afastando-se devagar, mas percebendo que o rapazinho o seguia. Então fez-se de rogado, pegou a assoviar, uma mão arrastando o carrinho e a outra suspendendo a calça, mas no que atravessa o outro lado da rua, percebe o rapazinho em seu encalço, as mãos entrelaçadas a frente, os olhos indo e vindo.

Era preciso ser enérgico se teimasse, mas por ora apenas aceitou a aproximação, afinal a rua era pública, e cada vez mais próximo Tazio se lhe desenhava encantador, pois afinal o que teria ele, um sujeito que trabalhava limpando as ruas, morando num beco de periferia, casado aos vinte cinco anos, sem se sentir nada de interessante, podia despertar interesse naquele garoto tão semelhante a uma garota olhando-se assim de longe?

_Vai ficar longe de sua casa, disse-lhe de costas, retirando o saco sobre o cesto na calçada junto ao prédio. Podia sentir a emanação próxima do garoto, quente, mesmo que a rua se revoltasse em sons e movimentos.

Roía as unhas, olhando-o de baixo quando se virou e atirou com certa violência o saco dentro da caçamba do carrinho. O homem riu crespo, os olhos num brilho quase velhaco, malandro.

Tazio aproximou-se mais e puxou-lhe o cordão de sob a blusa. O gari o olhou com espanto e riso e sentiu a respiração quente do adolescente tão próxima que empalideceu.

_Cadmiel... você se chama mesmo Cadmiel?

Riu, puxou-lhe o crachá das mãos e olhando para a própria identificação, respondeu-lhe firme:

_João Cadmiel, sim, que tem?

_Nunca vi esse nome... Cadmiel – observou num suspiro de olhos para o alto.

_Todos me chamam de João, Jão, respondeu num arrelio de voz um tanto áspera.

_Pois eu vou lhe chamar de Cadmiel, retrucou com petulância Tazio, prensando o delicado e longo indicador no peito do homem, bem onde a blusa se abria em largo decote, e suava, ele podia sentir a viscosidade quente e úmida na ponta do dedo, e voltou rindo, enrubescido, quente, abaixando os olhos, notando o sorriso perturbado do “seu” Cadmiel.

_Tenho que trabalhar, garoto – disse com tom carregado de impaciência o gari, afastando-se, dando-lhe as costas, arrastando seu carrinho para mais adiante, voltando-se por sobre os ombros, percebendo que o garoto o olhava do mesmo lugar, parado, as mãos fortemente entrelaçadas a frente, os pés cruzados, os olhos languidos de um sorriso delicado, cada vez mais, assim da distância, aproximando-se da semelhança de uma silhueta de garota com aqueles longos cabelos dourados.

_Arre – proferiu Cadmiel enfarado com aquilo, batendo forte as rodas do carrinho nas pedras da calçada – cada coisa que me aparece nessas ruas...

Conquanto as meninas, as suas lindas gêmeas, ainda tinha pouco a se preocupar, ainda estavam naquela boa idade que só as travessuras...

Tazio é que a inquietava. Era um menino que crescia saudável, belo, de boa altura, até mesmo inteligente e sensível. E o problema era justamente aí, no sensível, sensível demais no que mesmo achava Virgínia agora de concordar com Leonardo. Mas não admitia que gritasse com seu filho assim:

_Fale como homem, rapaz!

Aquilo a magoava, talvez mais do que ao menino, pois ele já se ria de escarnio e provocativo e subversivo. Afinal, é da natureza dos adolescentes a subversão.

Se pudesse confiar em Dora, mas Dora nem tinha filhos. Talvez fosse por isso que podia lhe confiar.

Dora achava sensacional o senso de organização de Virgínia. Se ela visse seu apartamento, onde livros e revistas velhas se atulhavam pelos cantos...

Ajeitou o aro dos óculos no nariz, fitou a amiga com doçura. Entre as xícaras de chá. As gêmeas se distraiam de frente a TV na sala ao lado, e Tazio estava confinado no quarto.

_É preciso aceitar, Virgínia. Isso não é tão mal assim...

_Mas, e o pai dele, Dora, hum, o Leo, aí meu Deus, Leo não suporta ouvir a ideia – desabafou de súbito Virgínia levantando-se, andando de um lado ao outro. Tinha movimentos e gestos enérgicos.

Dora não sabia o que dizer, apenas disse-lhe que isso parecia natural, normal, e no fundo Virgínia achava que Dora só dizia isso por que não tinha filhos, nem pensava tê-los.

Tazio apareceu ali no umbral da porta, os cabelos em desalinho, um rosto vermelho de sorriso petulante. Dora sorriu-lhe, mostrou-lhe o pirex com biscoitinhos. O rapazinho apoiou-se no joelho numa cadeira e inclinou-se sobre a mesa, pegando um biscoitinho e roendo com delicadeza.

_Falando de mim, aí – disse olhando da mãe para Dora. Esta olhou para Virgínia que lhe voltou os olhos enfarados.

_Discutindo assuntos de trabalho, menino – tergiversou dissimulada.

Tazio saiu em seu andar delgado e empertigado, roendo outro biscoito. Que falassem dele. O quê? Que tinha se gostava de homens? A vida era sua, só sua, pensou com certa arrogância, mas se entristecia. Sentia-se sozinho. Belo e sozinho. Sheine tinha lhe dito que Larissa gostava dele, aquela magrelinha de pele negra e cabelos frisados.

_Ah, ela é bonita Shê, mas eu... eu namorar uma menina – e gargalhou junto com a amiga compridona e pescoçuda, a bailarina.

Às vezes se achava parecido demais com uma menina, ainda mais deixando os cabelos assim tão compridos, olhava-se demoradamente no espelho, e pouco lhe importava se aqueles garotos, ah, o Pablo e Luan, pouco lhe importava, até achava bom agora, envaidecia-o que o chamasse de veadinho, de bichinha, de menina... que se rissem do seu jeitinho de falar, invejosos, principalmente o Pablo, moreno, robusto, de cabelos desgrenhados e grandes, com aquele todo ar rebelde. Rebelde reacionário, tinha lhe dito Max. Sim, voltou a pensar em Max, acudiu à janela. Mordia os lábios nervosamente, e Max, sim, Max, tinha conhecido na festa da Sheine, mas andava sumido desde que se ofereceu para ele.

_Sou muito oferecido, balbuciou com desgosto olhando a rua lá embaixo, as dunas de concreto. Ele costumava aparecer ali às quatro ou cinco da tarde. Max. Cadmiel tinha mudado os rumos? Mas como?, empalidecia a qualquer sinal, os cestos estavam vazios, tinha descido ainda pouco, mas o vento seco de outono espalhava folhas de árvores estéreis e resistentes e ele não aparecia.

Tremeu, segurou firme o batente da janela. Lá embaixo, com aquele mesmo uniforme laranja encardido, arrastando o mesmo carrinho desengonçado, mas não era ele. Era um sujeito encarquilhado, pálido, estranho. Saiu do quarto esbaforido, passou pela sala sem que a mãe e a amiga dela o visse e estava já lá na calçada. Encarou o homem tão assustadoramente, que este lhe devolveu um olhar vítreo de espanto incrédulo.

_Cadê o Cadmiel? Perguntou num tom autoritário.

_Quem? Voltou o homem como se a mascar a gengiva.

_O João, o Jão, o Cadmiel, o que ficava aqui, foi respondendo trêmulo e nervoso, Tazio.

_Aquele nego é muito folgado, respondeu o velho numa careta amarga de riso de escárnio, forte, parrudo, querendo ficar com serviço mole aqui – e riu cascateando – colocaram ele no caminhão para recolher lixo, que é serviço pra homem do porte dele... – fez um gesto de abano para os lados sobre os seus ombros e Tazio acompanhou a direção da mão como se achasse assim encontrar.

_Onde posso encontrar ele? Perguntou Tazio perscrutando os olhos vítreos de deboche e espanto do velho.

_Aquele safardana deve estar dormindo agora lá naquele beco entre os dois prédios ali – apontou a direção com a vassoura – é só o que sabe fazer, morcegar, ele e mais uma cambada de safados aí... tão lá ô – e teimava apontando com a vassoura como se identificasse no garoto alguém que pudesse fazer uma séria denúncia.

Tazio olhou a direção, do outro lado da calçada, entre os dois prédios pequenos, sabia aquele vão, aquele beco que deveria ter duas caçambas de entulhos. Há algum tempo os prédios estavam em construção. Até agora ainda havia poucos moradores.

Atravessou a rua empertigado, mas sentiu um tremor delirante ao se aproximar, a viscosidade úmida de um vento vindo de lá, risadas ecoaram e novamente o piso perdia a solidez, como se seus tênis grudassem, grudassem...

Estavam atrás das caçambas, já podia saber. Pombos revoavam tontos de um batente ao outro e era úmido ali como se fosse refrigerado. Hesitou em mais um passo ao ver uma perna se estender detrás da caçamba, a bota, a calça suspendida até o meio da canela e uma meia imunda. Sentiu uma compaixão naufraga e veio à tona decidido, mas é que seu coração se agitava como se pássaros, diversos, tatalassem asas freneticamente dentro do seu peito.

Cadmiel, deitado sobre um papelão no chão, um braço sob a cabeça, o torso nu, olhou do amigo ao seu lado para aquele que chegou.

Tazio sorria afogueado, apoiado sobre a caçamba.

O outro ria como se pudesse entender e Cadmiel ficou desconsertado, coçando-se entre as pernas, mesmo pôs-se sentado, o tronco ereto, um olhar que demonstrava aborrecimento, assim cruzando os braços fortes sobre o peito, mas lhe devolveu afinal um sorriso apaziguador. Tazio respirou fundo, abaixou os olhos novamente, depois levantou os olhos perdidos como se o preocupasse o atordoamento dos pombos.

_Posso me sentar aí do seu lado? Pediu num riso delicado e lubrico.

Sacudiu os ombros em resposta. Tazio sentou-se sobre as pernas dobradas no papelão, bem a frente de Cadmiel. O outro homem, magro, de torso nu e pele em tom macerado, virara-se do outro lado.

_Eu tô descansando um pouco aqui... que trabalho muito daqui a pouco... sabe – e coçava o cabelo encarapitado no casco, pegou o boné e bateu a esmo nos joelhos.

Tazio tentava encontrar algo para dizer que não fosse o que pensava, o que lhe impulsionava o lúbrico coração afogado de desejo. E de um impulso ergueu-se e sentou-se entre as pernas de Cadmiel. O outro virou-se de olhos esbugalhados e antes que Cadmiel pudesse repelir o atrevido, o amigo já lhe caía na pele. Tazio esfregou-se carinhoso e manso no peito do homem. Cadmiel segurou-o firmes com as mãos fortes assim pelos braços, tentando o repelir sem o machucar.

_Ficou doido, ficou doido, repetia transtornado, mas sentia a pele quente e macia do garoto se esfregando no seu peito suado.

Afastou-o num safanão. Tazio arfava atirado no chão do outro lado, apoiado sobre os cotovelos, fitando, nos olhos vidrados e pelos cabelos avulsos, o rosto perturbado do homem. Pôs-se de pé e seguiu carreira, mas não antes de gritar a plenos pulmões:

_Eu te amo, eu te amo, seu bobo, hum, e atiçou carreira.

Chegou a casa esbaforido, vermelho, ofegante, seguindo direto para o quarto, galgando a escada precipitadamente. Desabou de bruços sobre a cama, afundando o rosto no travesseiro, e nem chorava, mas se ria, explodindo numa felicidade estranha, reconhecida.

Abaixo, na sala, Virgínia ajeitava a mesa para o café da tarde como já soubesse que Leo chegaria com o Ivan e a Dora. Ela gostava daquele pequeno ritual. Seu jogo de louças com pinturas de rosas em relevo e as xícaras bem profundas e delicadas e espalhou na bandeja docilmente as anamarias assim encrustadas no involucro. As madalenas, pensou angustiada por um segundo a mais, alheia a pauta que se passara na reunião pedagógica, ainda.