Paixão de ponto de ônibus

Hoje era pra ter sido um daqueles dias normais, sabe? Um daqueles em que pego ônibus lotado para ir à faculdade. Eu já estava esperando pelo pastor que lê a bíblia em voz alta, pela senhorinha que sempre me pergunta se já chegamos ao centro e pelo vendedor de balas que nunca acerta um plural, mas que nem por isso deixa de ser simpático. Eu já sabia que, num ponto ou noutro, apareceria o chileno da flauta pra tocar as únicas duas músicas do seu vasto repertório. Dentre todas as pequenas coisas que sempre acontecem, eu só não esperava pelo novo, pela mudança na rotina.

De ponto em ponto, todos sabem que, se estivermos de pé, precisamos nos movimentar para o fundo, dando espaço aos novos passageiros. Foi me deslocando com um daqueles passos vergonhosos que nunca encontram o chão que percebi a séria e tempestuosa presença que é inspiração para este texto. Ela estava lá, cara, sentada solenemente ao lado da janela. Não bastassem os olhos distantes, quase intergaláticos, a moça me aparece com cabelos negros e longos – levemente sujos, mas encantadoramente bem penteados.

Bom, não sei se vocês perceberam, mas eu estava prestes a cair. Cair por amor ou por instabilidade do meu centro de massa. Sorte a minha ter conseguido me segurar. E eu juro que não ia contar este detalhe, mas convém dizer que, sem querer, acabei dando sinal de parada para um ponto no qual ninguém quis descer. O motorista não achou nem um pouco engraçado, eu admito que ri. Numa fração de segundos, corri para me recompor. Só pra contar: a garota não viu nada disso. Eu acho. Eu espero. Pelo amor de Deus!

Voltando a observar aquela que agora era, de fato, o centro das minhas atenções, notei muitas tatuagens. Cara, muitas mesmo. Vi um rosto caricato, flores, umas frases – nenhuma que eu conseguisse ler – e um desenho pela metade. Sobre esse momento, gostaria de dizer que é quase pecado usar roupas que tampem parte da tatuagem. Desejei que ela a tivesse coberto por inteiro. Desejei que o ar condicionado parasse de funcionar. Ai, que ódio daquela blusa de frio dobrada pela metade.

O pior é que, já estabelecido próximo à escada, não soube como agir. A naturalidade pareceu muito mais difícil do que de costume. Cê já parou pra pensar que ser racionalmente natural é quase impossível? Se você precisar pensar para agir naturalmente, tá errado. Comigo estava tudo errado. Leio um livro pra parecer culto ou respondo as mensagens no celular pra parecer sociável? Continuo com os fones de ouvido ou tiro o do lado esquerdo? Sento num dos degraus ou fico em pé de boas? Mochila nas costas ou no chão?

No final, acho que deu tudo certo. Pensei tanto que nada fiz. Nada até que a voz lazarenta do ônibus anunciasse inconvenientemente que eu precisava descer. Acredita que foi só neste ponto da história que trocamos olhares? Foi muito no finalzinho! Mas ou, espero ter retribuído com um dos meus melhores sorrisos, porque o que ela me deu foi indescritivelmente maneiro. Espero também ter sorrido com os olhos, e com a boca. Um sorriso tão longo quanto a demora para abrirem a cabine do Move, tão genuíno quanto a minha vontade de revê-la.

Hoje definitivamente não foi um daqueles dias normais. Este texto é para que ela saiba.