Acertando (Parte 1)

Elenco:

Joaquim ''Ana'' Medeiros / Jorge Savegnani

[Ato 1:]

     Podia-se ouvir o barulho do trem passar de longe, porém Ana... ou Joaquim como ela passou a se chamar recentemente, estava perto demais que ao ouvir o trem passar, esse era o único som em sua mente. Seus pensamentos estavam tão confusos e irritados, todos digladiando por uma atenção máxima e assim faziam com que sua cabeça não encontrasse um ponto fixo.

     Não exatamente. Ana se assim podemos dizer, estava decidida a passar pelo buraco no muro. Subir na ponte e se jogar enquanto um trem passasse. Estava com a ideia fixa fazia umas semanas pois fazer aquilo seria por fim em todas as suas angústias e em futuras discussões e mágoas que sua família ou ela enfrentariam em certo tempo.

     Usava sua calça marrom preferida, ou seria amarelo? Não sei dizer mas vestia também uma blusa cinza com uma blusa branca e vermelha quadriculada com seu tênis branco surrado. Não era sua melhor roupa para morrer, Ana brincava consigo de forma sátira. Porém eram roupas que seus familiares poderiam reconhecer no IML.

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     Debruçada sobre a grade de proteção, ela já tinha visto 3 trens passarem. Só que sempre passava alguém perto e ela não queria que sobrasse tempo para alguém impedí-la, afinal ela sabe que poderia não ter coragem. E a falta da coragem de jogar-se, a obrigaria a ter que pensar em algo novo ou em enfrentar toda uma vida sendo Joaquim no corpo de Ana.

     Às 5:30 da tarde seria a hora, já não passava ninguém perto e ela pode colocar uma perna por cima da grade e passar, quando o trem estivesse perto, ela iria tirar suas mãos da s grades azuis e dar um impulso para se jogar. O que ela fosse, seria enfim levado desse mundo e somente sobraria o que teria sido.

     Viu o momento se aproximar, passou uma das pernas pela grande, e ele ainda pisava sobre um pequeno pedaço da ponte. O trem das 5 horas estava chegando e aquela seria a hora de voltar para onde ela veio. Ana passou uma das pernas por cima da grade e pisou num pequeno pedaço da ponte, quando uma borboleta do nada foi para pousar em seu braço, ela foi espantar e se desestabilizou...

- EI! - Grita alguém que vem correndo em sua direção para segurá-la pelos braços. - Ei, ei, Ana, que isso? Você quase caiu, cara.

- Jorge? Uma borboleta...nossa que susto... - respondeu ela super nervosa.

- Sai daí, você poderia ter caído, se apoia aqui, vem... - Pediu ele puxando a garota.

- É, é. - tentava responder uma assustava Ana enquanto via o trem chegar.

      Ao ser envolvida pelo forte abraço de Jorge, ela foi se abaixando e sentando ainda na ponte enquanto outras pessoas vinham ver o que tinha acontecido.

- Você tá bem, Ana? Meu deus olha como você está branca...tá bem? - Perguntava nervoso.

- Sim, tô bem, foi só um susto. - Dizia ela enquanto respirava de forma pesada.

- Ana, não precisava ter medo. Vamos descer? - Perguntava Jorge já mais calmo.

     Embora ela estivesse tão assustada que não poderia dizer uma frase por inteira, parecia estar entre tão desanimada pensando no futuro e tão feliz por ter sido salva ou quase isso por Jorge. Eles não eram grandes amigos mas moravam perto e estudavam no mesmo colégio. Depois de descerem, Ana subiu em sua bike e eles foram embora dalí.

- O que você foi fazer lá? - Disse ele quando chegaram a frente de uma lanchonete.

- Ah, eu não sei. Estava passando e de repente me vi do outro lado quase caindo - Disse ela fingindo.

- Nossa. Que estranho, além de linda pode se teletransportar - Retrucou ele rindo.

- Brigada - Disse uma Ana corada pelo elogio.

- Eu pensei que, sei lá, você fosse se jogar...que doidera né? Nada disso - Jorge

- É, que isso. Nada disso. Não foi nada, pode ficar tranquilo. - Continuou ela disfarçando.

- Vou ficar, mas queria que você também. Vamos lanchar? - Ofereceu ele.

- Vamos, claro. - Diz ela ainda nervosa por dentro mais contente de estar ali.

      Enquanto iam lanchando e depois disso, eles continuavam conversando e notaram que praticamente não se conheciam embora tivessem estado quase sempre próximos durante toda vida. Pareciam ficar cada vez mais contentes quando percebiam as coisas em comum ou que se encaixavam. Ela notou uma certa quedinha dele por ela e pensava consigo mesmo ''quem poderia ser apaixonar por um ser feito eu?''

- Minha mãe ficou muito triste após o falecimento da sua - Confessou ele. - Meus pêsames e desculpe lembrar.

- Obrigada, nada, não é nada. Imagino que tenha, elas eram bem próximas - Diz ela lembrando que sua mãe havia falecido com certo desgosto por não ter visto Ana gostar de ser uma menina ''normal''.

- E como são as coisas na sua casa, Ana? - Pergunta Jorge quando percebe que está bem tarde.

- São normais eu diria, não vai muita gente lá, depois da morte da mãe, meu pai só fica sozinho e com a casa praticamente fechada. Só tenho mais contato familiar nas reuniões nas casas dos meus tios - Ana.

     Ela responde enquanto admira a lua poderosa no céu e então vira o rosto para Jorge e o nota completamente embabacado por ela. Ele sorri e em sua testa ou talvez em seu olhar, exista um convite para visitar sua casa mais vezes, Ana sabia que ele tem muitos primos e amigos que parecem ser legais.

     O jeito dele falar e como mostrava ser um excelente rapaz. Alguém com que ela poderia contar sempre que precisasse. Porém dizer tudo o que ela sentia e pensava poderia o afastar, e naquele momento aquilo era seu maior medo. Estar tão distante de seu pai, em um plano diferente de sua mãe e contra quase todos que conhecia, já era difícil, ficar contraria a Jorge iria trazer de volta os pensamentos suicidas. 

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[Ato 2:]

      Os meses vão passando...Ana ouviu uma garota falar uma palavra no banheiro: ''trans''. Ouviu que era uma diferença entre sexo e mente, após ouvir, sentiu um leve estalo na mente que a fez ir correndo pesquisar em enciclopédias. Não achou muita coisa lá e nem na biblioteca escolar. Foi então para uma lan house perto de sua casa e já sabia que fosse o que achasse, deveria apagar a pesquisa do histórico do navegador.

      Encontrou matérias e muitas informações ''soltas'' na internet. Ler página por página, fazia que Ana desaparecesse cada vez mais e que Joaquim dentro dele estivesse cada vez mais vivo. Mesmo ambos co-existindo fazia tempo, nunca houve uma explicação para a existência deles.

     Ana saiu de lá como se tivesse feito a maior descoberta de sua vida e talvez tenha realmente feito. Estava doida para conversar com alguém mas só tinha Jorge para contar porém se encheu de medo, os últimos meses com ele e seus novos amigos foram tão incríveis. Ana finalmente foi se encaixando em algum grupo e logo agora não gostaria que isso acabasse.

///

     Ana que já tinha um jeito de andar e se vestir que era comum para garotos, passou as últimas semanas pesquisando como seria aparentar como um homem ''de fato''. Começou a usar algumas roupas emprestadas de Jorge que naquela altura já era seu namorado, foi aliviada pela moda que roupas emprestadas que estava iniciando uma temporada. Joaquim estava na gestação...

      Leu cada vez mais entrevistas com pessoas trans e entrevistas de médicos e psicólogos. Parecia já aceitar e amar esse novo alguém que ela é e antes tanto abominava a ponto de procurar por fim aquilo da pior maneira possível, o suicídio. Ana já estava numa transição visual e mal esperava para que viesse a transição física. 

[Ato 3:]

      Após seu aniversário de 18 anos, Ana poderia começar sua transição física aos poucos para que ninguém notasse muito. Agora sem seus colegas de escola, apenas Jorge e seu pai poderiam notar mas ela não poderia evitar mais.

      Com o tempo, sua voz e seus músculos estavam engrossando e em uma das vezes que ela se escondia no banheiro e aplicava os hormônios:

- Ana..., você sabe eu deixei as... - Disse Jorge entrando no banheiro - Ana? O que é isso?

      Ao ser pega no flagra, ela acabou deixando a seringa cair e começou a olhar para Jorge, sem ao menos piscar.

- Mais que diabos está acontecendo aqui? - Disse num tom de voz surpreso. - Responda! O que tá acontecendo? - Continuou ele ao ver que Ana não sabia o que falar.

- Hormônios, hormônios. - Disse ela sem capacidade para completar frases.

- Então por isso você está tão forte...achei que fosse acadêmia ou os suplementos mas você está tomando isso? Pra que, Ana? Você quer ser fitness? Precisa de hormônios? - Disse ele se aproximando e pegando a caixinha com hormônios.

- Não é pra isso. - Disse ela encostando na parede tão branca quanto ela estava - É outra coisa.

- Que coisa? - Perguntou ele lançando um olhar suspeito para ela.

- Eu...a coisa que... - e leva suas mãos ao rosto - eu.

- Mas eu não tô entendendo. - Disse ele se abaixando assim como Ana fazia - Pra você? Por que?

- Eu não sou Ana...quero dizer...sou mas não sou. - Exclamou ela já chorando.

- Por que não seria? O que te falaram na academia? - Perguntou ela acariciando seus cabelos.

- Não foi o que me disseram, é o que eu sinto aqui dentro. - Levanta a cabeça e o olha nos olhos - Aqui, sabe?

- E o que seria esse sentimento? - Pergunta mais uma vez sem conseguir imaginar uma resposta para sua pergunta.

- Outra pessoa, eu sou outra pessoa. - Disse ela parecendo desesperada.

- Como assim? Vai me dizer agora que tem múltiplas personalidades? - Disse num tom sarcástico bem no fundo.

- Seja quem eu for, ainda te amo com todas as minhas forças. Mas eu não sou essa Ana, eu sou outro...

- Outro? - Disse ele se ajoelhando e meio irritado

- Eu sou trans! Sou um homem no corpo de uma mulher...

      Jorge dá uma bofetada no rosto de Ana.

     Na certa, Jorge jamais teria ouvido esse termo ou qualquer associação que fez naqueles segundos, foi de que trans fosse algo demoníaco ou algum tipo de aberração monstruosa e perigosa.

- Me desculpe, Ana por favor! - Disse ele desesperado enquanto começava a chorar - Por favor, me perdoe. - Disse a abraçando com toda força.

- Por isso me viu naquela maldita ponte, eu deveria ter me jogado! - Disse ela fugindo do abraço - Não, eu não posso, eu não quero mais, me solta!

- Não! Eu te amo, me desculpe, eu não sei o que é isso. - Diz enquanto tenta segurá-la em seu abraço - Ana!

      Ambos param.

- Eu sou um cara no corpo de uma mulher. - Diz enquanto escorre uma lágrima - Parece bom pra você? Satisfeito?

- Não mas... como assim? O que é isso? - Disse ele mais confuso que nunca.

- Acontece quando mente e corpo não estão de acordo. - Disse ela num tom sarcástico. - E adivinha? A sortuda da vez fui eu...o sortudo.

- Ana, não fala assim... - E foi cortado.

- JOAQUIM! EU QUERO QUE ME CHAME DE JOAQUIM! EU SOU JOAQUIM! - E todos os cantos do banheiro pareciam poder ouvir os berros.

- Então você é esse cara ai, e ai? Como ficamos? - Disse Jorge se acalmando do choque.

- E ai? - Aquilo parecia um balde de água gelada, será que Jorge perguntou porquê realmente amava? - Como assim?

- O que? Eu te amo, An...você, te amo e como ficaríamos agora? - E eles se olharam quietos por instantes. 

- Não sei, pessoas trans tem namorados héteros também mas não sei isso se aplicaria... - E pausou

- Aplicaria a? - Quase pediu para completar.

- A você. Não sei se você faria isso. - Disse ela numa desesperança sem tamanho.

- Por que? Isso não muda quem eu sou né? Que dizer...eu gosto de mulher e...mas eu...não muda anda em mim, não? - Jorge

- Não, você continuaria sendo o mesmo cara, sexualidade não muda nada por curiosidades ou experiências diferentes...você seria o mesmo... -

- Posso tentar? - Disse ele ameaçando um sorriso.

- Podemos tentar? - Pergunta ela de volta o olhando e pegando em suas mãos

(Continua...)

TEXTO E REVISÃO: Raphael Maitam

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