Nascera da Fúria de um Anjo em BH

Me lembro como se fosse ontem. Era daquela juventude de Belo Horizonte, a alegre promessa de grandes de talentos que nosso estado ainda ofertaria ao nosso país. Mas ainda era novo, muito novo e as más experiências ainda lhe aguardavam pra lhe ensinar sobre a vida e o amor.

Tocava seu violão nas praças, por ser tímido ainda evitava as mulheres, mas não evitava a música que lhe encorajava a encarar o público munido de seu romantismo e talento. Mas com as mulheres o romantismo e o talento não seriam o flerte amoroso com que acariciava o público com suas canções.

Então um dia, voltando da faculdade, viu se apaixonado ao ver aquela garota. Ela fazia Ciências Sociais, soube de um amigo que o acompanha e tentava entender o que se passava naquele coração de artista.

Ela parecia um anjo, um modelo feminino das imagens de Nossa Senhora. A pele clara, os olhos azuis e as feições delicadas fez com o coração do pobre estudante e músico batesse num ritmo que ainda não tinha conhecido. O cabelo loiro, ora escondia a face alva, ora um dos olhos azuis e brilhantes apareciam, ora se escondia num reluz de ouro que brilhava como um pequeno Sol na multidão.

Seu amigo viu então que alguém ao seu lado fora atingido pelo cupido. Coisa mais clichê, mas caros leitores, estamos falando dos anos 70, discoteca, anticoncepcional, amor, Bee Gees e ainda não havia o HIV. Sejam bonzinhos!

Sim parecia que ele estava passando mal ou que tinha visto uma assombração. Não era um sorriso diante de uma bela paisagem, parecia de alguém tinha encontrado a própria vida desfilando pelo campus da UFMG, iluminando os solteiros, os compromissados, os vagabundos e qualquer que fosse.

Ele sentia que seria só mais um. Não era rico e nem o melhor aluno. Tinha um violão do qual tirava alguns elogios e alguns trocados nos bares nos botecos de BH.

Ele se sentia ferrado, por assim dizer. Mas tentem entender este pobre coração ingênuo deste talvez artista de renome e talvez um futuro bom pai de família ou talvez coisa nenhuma - não tinha certeza de nada. Ele encontrou o ser divino encarnado, ele sentia que tinha sido feito para servir aquele ser em forma de mulher. Vou repetir isto, ele descobriu que todo seu ser havia sido concebido para servir aquele ente que desfilava indiferente a qualquer um.

Ela usava um cachecol vermelho e óculos com lentes pretas grossas, mas que não ofuscavam o azul brilhante de seus olhos. Carregava em seus braços um livro de Levi Strauss chamado Antropologia Estrutural II.

Andava um pouco fora de moda para época, por que não queria estar na moda, não queria rótulos, o que não deixava de ser um tipo de rótulo, mas enfim.

Então ele chegou em casa, pediu bênção a sua mãe e foi dormir. Não conseguiu. Sua mãe bateu na porta do quarto e entrou. O filho parecia doente e ela se contentou com um "esta tudo bem mãe". Mas não estava, ele pensou nela a noite toda. Chegou a pensar em se matricular na mesma disciplina que ela, mas já havia passado o período. Tentou ler Antropologia Estrutural II, não entendeu nada, Eduardo fazia economia.

Se ofereceu como bolsista sem remuneração, no projeto que ela trabalhava. Como ele ficou sabendo disto? Todos os amigos, parentes, familiares, colegas de curso, alguns vizinhos, seu primo pequeno e outros que o conheciam só pelo nome sabiam que da paixão de Eduardo.

Não havia assunto que não pudesse ser relacionado a um possível casamento e filhos que Eduardo teria com ela. Futebol, política, macumba, porões da ditadura, Caetano Veloso, tudo lembrava ela. Mas a coisa não era só deslumbre, só de vez em quando era. A maior parte do tempo, Eduardo tentava se convencer da possibilidade deste sonho, apesar da razão lhe mostrar o contrário, a emoção não se contentava com as respostas que a inteligência lhe dava.

O rapaz inseguro e tímido não era uma ameaça ao mundo dela. Era uma futura cientista social, muito empenhada e com planos definidos para o futuro. Então foi fácil para ele ter sua amizade.

Tentava todos os assuntos possível para de alguma forma lhe ter a atenção e algum lapso de admiração. Mas o mundo dela era outro. O violão dele era pouco pra ela, seu romantismo algo bobo, que ela aprendeu a desconfiar e desconstruir.

Então, a cada dia que se prolongava esta amizade, que era algo mais próximo de uma devoção unilateral, que a divertia e às vezes a preocupava, mais se encontrava apaixonado e sem saber como viver sem ela. O que lhe causava aflição, pois para ela o novo amigo era o carinha bacana legal que tentava lhe agradar e se interessava por seus assuntos - embora ele não a entendesse muito bem...

O maldito dia em que Eduardo Neto ouviu seu coração e sua mente para que ele se declarasse pra ela. A aflição dos dias não lhe davam esperança lhe dava mais amor, e isto até mesmo seu coração bobo havia percebido. Era preciso ir para o tudo ou nada.

Preparou o grande plano: um mensageiro entregaria rosas no seu trabalho quando ele não tivesse lá. Um bilhete explicaria o motivo da demora em lhe declarar o amor, sua insegurança e a promessa de a fazer a mulher mais feliz do mundo.

Eduardo aguardou 10 minutos no estacionamento, cada minuto observado, segundo a segundo, antes de encontrar com sua amada. Então depois de séculos passados em 10 minutos, entrou com transpirando e com o coração batendo forte.

Ela não estava lá. Umas colegas disseram que ela havia recebido as rosas e saído enfurecida. Alguns lhe disseram que ela pensou ser do ex namorado tentando voltar, mas que era de outra pessoa que ela não quis dizer o nome.

Eduardo havia sido rejeitado por um anjo a pedido de Deus, assim sentia. Sua dor não era melancólica, chorosa ou superficial. Fora um "não" tão bem recebido que não lhe restou nada a dizer, a tentar ou para se consertar. Era ele novamente sozinho em busca de um sentido para a sua existência, para seu lugar no mundo, para o que era.

Estava incompleto, cheio de dores, olhos que se recusavam a entregar as lágrimas, sem sentir doçura ou qualquer coisa de belo em tudo que sentiu. Ele havia cultivado flores e estas se converteram em ervas daninhas que sufocavam seu coração.

Pediu então seu chefe, no mesmo dia, que o dispensasse. Mas deu a ele um tempo para pensar, era um bom colaborador e dedicado. Buscava nos escritos, nas folhas, no vento e nas paisagens algo que o encantasse tanto quanto ela. Não encontrava e procurava inutilmente.

O mundo era então cinzento e precisava se acostumar com isto. Ela o procurou sabendo de sua decisão de sair. Quando ele a viu se aproximando, ele a esperava como alguém que o iria o ferir novamente. Mas não havia mais onde ferir, não temeu e se pôs a ouvir.

Ela disse então que ele não precisava sair e que era pra colocar uma pedra naquilo tudo. E voltou a trabalhar, mas não via mais um anjo, via uma lembrança fria de que era perigoso e pouco provável que houvesse espaço naquele mundo para o amor tal como queria viver.

Este mundo frio que ele fazia questão de ver e de se conformar, embora um muito doloroso pra ele suportar, o tirava cada dia mais a alegria. Este meu amigo já não nutria sonhos por nenhuma mulher mais, ele não desacreditou nela, ele desacreditou no próprio amor.

Não contava mais que alguma mulher o fosse aquecer naquele mundo sombrio em que se sentia abandonado. O que salvou Eduardo foi que os sons mais sutis e o pouco de poesia que lhe revelava sua música o despertou. Buscou com talvez a mesma paixão a música mais bela que poderia fazer. Era como se esta música fosse feita para mexer até mesmo com o coração mais endurecido, mas não havia endereço certo.

Era uma música para quem queria acreditar de novo no amor, que embalou muitos amores, com certeza, mas não o embalava e nem lhe comovia o bastante para tentar vivê-lo novamente.

Sabia que o mundo não mudaria, mas sabia que poderia lhe dizer sonhos, poderia lhe dar as mais belas paisagens, poderia dar ao mundo a capacidade de sonhar belos amores, ainda que ele mesmo não acreditasse nisto.

Pessoas cantando seus versos, buscando saber quem ele era. Quem era o novo talento da música mineira lhe deu alguma esperança de que o mundo poderia aprender a amar. Por que não ensinar a sonhar os que precisam de sonhos? Mas ele não acreditava mais poder vive-los, mas quem sabe os outros.

Era o mais próximo que poderia chegar do grande amor que sentiu, era uma distância segura limitada pela disciplina da arte e do ofício de músico profissional. Fez sucesso, ganhou notoriedade e respeito dos músicos brasileiros. Apresentou seu trabalho na TV e em grandes festivais. E compôs músicas com artistas que antes lhe serviam de inspiração.

Mas se você olhasse bem firme nos olhos de Eduardo, o que seria por poucos segundos, pois ele ainda era tímido, veria ali o mesmo olhar perplexo e desamparado daquele dia em que enfureceu um anjo com o amor que sentia.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 10/09/2017
Reeditado em 10/09/2017
Código do texto: T6110204
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