AS MANHÃS DE INVERNO

Conto do Livro "Manhãs de Inverno".

Carlos despertou cedo naquela manhã de inverno. Fazia um frio cortante do lado de fora da casa onde vivia sozinho. Seus pais há muito tempo haviam pedido divórcio e não tinha contato com eles há meses. Às vezes telefonavam e Carlos mal os atendia, respondia às suas perguntas e atenções normalmente, sucintamente, monossilábico. Depois desligava o telefone e voltava para sua atividade diária preferida que era cuidar de seu jardim.

Sabia no tempo certo podar os ramos das flores, o tempo das florações, das folhagens crescerem, aguá-las durante o dia e fazer enxertos de espécies várias, de lírios, jasmins, hortênsias, dálias, sempre-vivas, rosas, cravos. Era verdadeiramente primoroso seu jardim, aos fundos da casa pequena de apenas seis cômodos, sendo um deles a cozinha, onde também gostava de passar algum tempo de seus dias fazendo seus quitutes. E seus amigos sempre elogiavam-no, notando, quando vinham visitá-lo, a evolução de cada vegetal, as mudanças que sofriam conforme o rapaz cortava seus talos ou plantava novas espécies, as transformações que trazia cada estação e cada mudança que ele fazia, transportando os pesados vasos de argila para os cantos do pequeno alpendre, por vezes rentes aos muros altos da casa, por vezes no centro do pequeno gramado onde podiam receber mais luz.

Mas naquela manhã Carlos não se sentia bem. Não tinha gosto do ir ao jardim a fim de continuar o trabalho começado no dia anterior. Era segunda-feira e a cidade montanhosa onde vivia, próxima à capital, de poucos habitantes – a mesma cidade de seus pais – estava nevoenta, densa. Parecia combinar com uma tristeza e uma desmotivação dele próprio que se iniciara já há alguns meses.

Não lhes informei, mas Carlos tinha um irmão, o qual vivia em outro país, e com o qual pouco tinha contato ou uma amizade franca, dessas de se poder falar sem pejo sobre o que se sente com relação à vida, aos fatos, às transformações que o tempo causa na gente interiormente. De modo que suas conversações, quando Diego lhe requisitava pela câmara do computador, o que raramente acontecia, se resumiam ao que cada um vinha fazendo, seus negócios, trabalhos. A qualidade da relação dos irmãos, que já era um tanto distante e banal, parecia ter piorado com o dito divórcio, tornando-se ambos mais evasivos e ensimesmados. Por acaso havia falado pela máquina ainda ontem com Diego, obviamente nada sobre o sentimento terrível de solidão de que sofria. Pois, ora, mesmo que tivesse “amigos” com quem conversar, quando os recebia em roda em sua casa, mesmo com eles, seus relacionamentos também não passavam de palestras superficiais, sempre se referindo aos “tropeços da vida”, como ele chamava seu sentimento de profunda desilusão, com certo humor, por vezes até zombeteiramente. Nesses momentos riam muito e bebiam, até o ponto de caírem no chão e ali mesmo dormirem, cada qual num almofadão arrumado do cômodo.

No entanto nada que tocasse seu coração. A futilidade de seus assuntos e na maneira como se exprimia só buscavam ocultar um terrível desentendimento interno de que não queria falar, não queria tocar por medo ou preguiça de mais sofrer. Na verdade se envergonhava diante dos outros e de seus próprios sentimentos, era muito orgulhoso para admitir que os tinha como uma pessoa qualquer. Mas não chegava a atinar nisso, tudo acontecia inconscientemente. Não saberia dizer, infelizmente, ao efeito das bebedeiras, que buscava como um anestésico, mas que não sanavam a dor, o que havia falado a alguém em algum dia anterior, o que também não lhe cobravam seus colegas, moços e moças como ele, solteiros ou um dos outros acompanhados, como ele distraídos e alienados de seu mundo emocional.

O hábito de beber, que começara com as noitadas da faculdade de engenharia, e que se tornara cada vez mais frequente, até o ponto de não precisar da companhia dos outros para satisfazê-lo, e o convívio pouco substancial com as pessoas que o cercavam, não conseguiam, no fundo, preencher a gigantesca carência afetiva que o tomava. Pareciam, antes, tornar seu mundo interior, tão abandonado por ele mesmo, cada vez mais estranho. Sofria, mas não sabia de que, e nenhuma referência externa conseguiria lhe chegar, por falta de condições psicológicas dos outros (principalmente dos familiares) e por ele próprio colocar em torno de si um muro, uma casca rígida, quase que uma armadura de batalha até, a qual não permitia que ninguém adentrasse seu mundo vazio, melancólico, taciturno, e a li lhe desse algum calor, algum carinho.

O mesmo poder-se-ia dizer de Bia, Reinaldo, Gustavo, Fábio, todos os colegas --- cada um em companhia dos outros, porém solitários em seu mundo interno já esquecido. Mas quanto ao nosso personagem principal, até mesmo a alegria mais branda e pequena das flores agora emurchecia-se, fanava sobre si mesma naquelas manhãs de inverno. Então ele, tendo tirado o telefone da tomada e acendido um fogo escasso na lareira e sob o efeito de duas doses de vodka, deitou-se no tapete de lã da sala de visitas vazia. Havia pouca claridade naquele dia e os raios solares reverberavam mudamente e se esmaeciam por detrás de nuvens grossas. O moço sentia um tremor por dentro, mas que descobria, lentamente, ser mais do que questão de temperatura externa. Era uma corrente que vinha-lhe do fundo do coração, como se algo nele quisesse brotar e reclamar o direito à vida, direito este que somente ele próprio poderia se dar.

Entrevia, pela primeira vez, como se ao passarem tantos desencantos, que poderia dar espaço para aquele sentimento legítimo, deslumbrante. Pressentia algo que não chegava a conseguir definir em uma fórmula, mas que tinha a impressão (pois ele era muito sensível) que poderia ser algo interessante e grandioso, como nunca antes poderia supor. Algo brotava de seu peito, uma flor fresca de espécime nunca antes vista. Algo de tal modo inédito que poderia julgar, catalogar talvez, nunca os seus mais afins terem tomado algum contato com aquilo.

Precisava mostrar isto a eles, rápido!, pensou, querendo lhes ofertar um presente bom, enquanto a sutil vibração, que agora aumentava, ia dando-lhe vontade de dormir. Como num sonho via o que seria, o que faria dali em diante por toda sua vida! E como tinha planos para o futuro, tinha tanto, mas tanto tempo! Mudaria de casa, mudaria de cidade, faria novos amigos, teria uma namorada, um carro para passear para onde quisesse... Viajaria de trem, faria escaladas, montaria em cavalos, mergulharia em rios brabos!

Mas levaria aqueles que conhecera até então? como contaria a eles aquilo que agora lhe acontecia, e que via, agora, subitamente, mas que mal saberia definir? Como levar a mãe, o pai, o irmão e os colegas, para mirarem diante de si aquele abismo belíssimo, luminoso, de inauguráveis e prometidas ofertas? O mundo que agora descortinava-se aos poucos para Carlos para que não o ferisse ou dilacerasse por completo, a ele que sempre estivera tão encerrado em si mesmo, e que lhe dava uma angústia por desejá-lo tanto naquele momento, mas temendo não poder vivenciá-lo e prová-lo até o fim, era simplesmente encantador, verdadeiro, sobre-humano... Assim, de repente, se alternavam aquelas visões intensas...

E foi assim, no meio do raiar daquela escolha, o fogo da lareira se consumindo e deixando apenas umas brasas quase, quase apagadas --- foi assim, no último momento daquele inverno de florações, que ele teve sua chance de salvar-se. No último momento despertou o broto frágil e pueril, porém vigoroso, cheio e gigantesco de novas possibilidades. Assim encontraram a flor em sua haste, dias depois, encolhida no chão como um feto, pálida e com suas pétalas finas, desmanchadas, tão bem rendidas e cuidadas por ele; parecia que se aconchegava e era velada nos braços de algo muito, muito maior e inexplicável; nos braços de algo de que, aliás, muitos anos depois, em outros invernos ou outras estações --- por outras sendas várias --- vieram, desavisadamente, tomar conhecimento.

Fernando Munhoz
Enviado por Fernando Munhoz em 13/10/2017
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