UM MILAGRE DE AMOR

Numa chuvosa e fria manhã de Novembro, Lucy apresentou-se perante aquela enorme mansão, assustadora e tendo por enquadramento o cinzento escuro do céu.

Era enfermeira recém-formada e aquele seria o seu primeiro emprego, colocação arranjada através de entrevista minuciosa efetuada por três pessoas.

Sabia que iria ser cuidadora de um homem jovem, da idade dela, que devido a uma queda tivera o azar de lesar gravemente a espinal medula e por isso ficara tetraplégico, condicionado a uma cadeira de rodas elétrica ou a uma cama. Tudo, desde a alimentação, o banho ou o simples vestir eram feitas com a ajuda de duas pessoas. Uma delas, já com alguma idade, iria ser substituída por ela.

Já a aguardavam e levou uma repreensão de Jerome, o mordomo:

- Madame gosta de pontualidade, ou não fosse inglesa de gema!

Lucy pediu desculpa e atrapalhada, deixou a mala no hall e seguiu o mordomo até uma sala enorme, luxuosamente decorada e onde uma senhora idosa, elegantemente vestida como se fosse à ópera, com um coque que lhe dava um ar simultaneamente altivo e distinto, a aguardava impaciente.

- Gosto de pontualidade, menina... - olhou o papel em cima do piano e prosseguiu - Lucy! Meu sobrinho é a luz dos meus olhos e enquanto eu viver quero que tenha todo o conforto e nunca lhe falte nada! Sobretudo carinho e cuidado!

- Sim, minha senhora!- respondeu Lucy, algo constrangida.

Depois, os outros acompanharam-na até outra sala, mais pequena, onde um homem de cabelo revolto, barba por fazer, a olhava de lado, curioso e ao mesmo tempo de modo disfarçado.

A tia apresentou-o: - Eis Charles, o meu adorado sobrinho...

Ele olhou Lucy, curioso e esta aproximou-se, fazendo uma vénia.

Madame pediu-lhe que nunca descurasse os seus deveres para com o doente, o considerasse como um parente chegado. Depois saiu da sala e enquanto Lucy e Charles se olharam durante algum tempo, ela vislumbrou nele algo mais que um paciente, descobriu um olhar solitário, carente e triste, uma ave ferida, vítima do infortúnio. Enterneceu-se e depois falou: - Hum... precisa de fazer a barba e pentear-se... perdão, claro que não pode fazer isso, mas eu prometo dar o meu melhor... - e tocou-lhe a mão fria.

Após ter visitado as restantes dependências do casarão - eram muitas - ficou a agradada com o quarto que lhe fora destinado, ao lado do de Charles e com porta de comunicação direta. Ficou a par dos horários diários, banhos, refeições e alguma medicação.

O mordomo e a cozinheira, Gwen, aguardaram por ela para o banho de Charles e Lucy constatou um complexo aparelho elétrico, uma pequeno guindaste que elevava o corpo do paciente e o suspendia numa cadeira especial, de forma a poder ser lavado. Lucy seguiu as indicações de Jerome mas foi um pouco desajeitada, talvez pela atrapalhação de tocar um corpo magro, jovem como ela e nu.

Depois de o secarem e vestirem, Lucy ofereceu-se para lhe fazer a barba, o que fez com imenso cuidado. Depois penteou-o e o seu toque fez Charles fechar os olhos. Quando os abriu e pela primeira vez sorriu, ao fim de algumas horas, Madame, que espreitara pela porta entreaberta para avaliar do desempenho da nova cuidadora, sentiu uma enorme alegria... O sobrinho sorrira e melhor ainda, falara, agradecendo à cuidadora o seu desvelo. Certamente que a beleza e jovialidade de Lucy tiveram um efeito benéfico em Charles. A enfermeira reconheceu nele um homem bonito e com um belo timbre de voz.

Os dias foram passando, Lucy entrou na rotina do paciente e a cozinheira não mais foi chamada para ajudar a vestir Charles ou a dar-lhe o banho diário.

À tarde, sempre que o tempo o permitia, Lucy acompanhava-o até um grande terraço, desligava o motor da cadeira e ela mesmo a empurrava suavemente até perto da balustrada, onde ambos ficavam em êxtase, olhando o mar. Esse era um momento de partilha da natureza, de profunda comunhão num silêncio só deles, apenas quebrado pelo cíclico rebentar das ondas na falésia.

Charles reaprendeu a viver, sobretudo sempre que olhava para Lucy.

Adorava o toque macio das mãos dela quando lhe afagava o rosto e via amor no seu olhar.

A tia ficava maravilhada, pasmada com a metamorfose operada no paciente e mentalmente agradeceu a Deus por ter concedido essa imensa graça. O sobrinho era a luz dos seus olhos e agora via-o feliz, apesar do infortúnio.

Charles e Lucy trocaram o primeiro beijo numa noite em que ambos, do lado de dentro de uma das janelas da sala maior, contemplavam a lua, essa feiticeira dos corações.

Fruto da aura que Lucy trouxera à casa, depressa se tornou um membro da família pois com a bênção de Madame, preocupada em prolongar a felicidade do sobrinho, consentira e sobretudo incentivara o casamento entre ambos.

Lucy sabia que nunca teria tudo o que o casamento poderia proporcionar, mas aceitara as limitações de Charles, amava-o e isso era o mais importante.

E assim viveram naquele palacete da costa da Cornualha, mesmo após a morte de Madame. Adotaram uma criança que se tornou o ceptro da felicidade do casal.

Carlos Guerra Nunes
Enviado por Carlos Guerra Nunes em 23/11/2017
Reeditado em 23/11/2017
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