OS CINCO SENTIDOS ( dezembro de 1991)
 A Jorge Lescano, in memoriam




 
        - Papai Noel não veio...
     - Veio, mas já foi embora.
     - ... não veio...

 
        A voz desolada sobe, pequenina, e é assim recolhida por uma das janelas do sexto andar. No meio, a fala impiedosa.
        O olhar, através da janela, percorre o musgo que recobre o muro do fundo do prédio, por onde subiu, com dificuldade, a pequenina voz, o muro por onde se alastra o verde úmido, com trilhas para formigas e outros insetos. Do lado oposto, janelas laterais se alongam ao sol. 
 
               OS PASSOS INVISÍVEIS.
 
        Noventa graus à esquerda: os livros se aninham, calmos e distantes. Os passageiros. Papéis recolhidos nos envelopes e nas pastas repousam, por ora, do olhar que cotidianamente os vasculha em busca de indícios, em busca de respostas para as perguntas que a memória gostaria de conseguir esquecer.

            AS CIDADES MEDIEVAIS.

        ... não veio...
        A voz, retornando, mais pequena ainda, tentando  aceitar o fato irreversível: Papai Noel veio, mas, já foi embora.
        As mãos pegam, ao acaso, o livro mais próximo. Na página, o dedo pousa de leve. ONTEM. A palavra salta, junto com a lembrança da outra, na língua incompreensível que, dos cinco, só Elisa conhece. No quarto permanece o cheiro dos pêssegos e na boca ainda o gosto do chocolate suíço, presente de Raul.
        Cento e oitenta graus. Lentamente, os olhos se erguem até se encontrarem no espelho: Ana vê o próprio
reflexo. Onde o rosto de Daniel?

                         O ESPELHO.
 
        Márcia, a louca de Daniel, em algum lugar... melhor não saber.
        Elisa, perto do polo norte, onde nasceu Papai Noel.
        Daniel, há algumas horas daqui, no solar diante do vale verde.
        Raul, do outro lado desta cidade.
        Ana, os olhos no espelho onde nunca viu o rosto de Raul, seu companheiro, seu amante.
        Os dedos tateiam a superfície fria em busca da abertura por onde Alice passou para o Outro Lado.

                     OS CHAMADOS.
 
        O vinho. As taças púrpuras. A boca de Daniel.
        Em algum lugar, perto do polo norte, Elisa se lembra de que, há quase um ano, estava nesta cidade, com Raul.
        Em algum lugar... melhor não saber... Márcia... melhor não saber...
        Há algumas horas daqui, Daniel tenta se lembrar, mas, também o rosto de Ana se lhe escapa do espelho.
        Do outro lado desta cidade, Raul caminha; talvez entre em um bar, para tomar um café expresso; mentalmente procura uma palavra de encaixe perfeito no texto que a aguarda; quem sabe pense em Elisa cujo olhar, neste instante, se perde na neve, ou em Ana, que se lembra das formigas.
        Aqui, os olhos já se desviaram do espelho.

    ANTIGAMENTE, O MURO DOS FUNDOS DO PRÉDIO FOI BRANCO. Há muito tempo, também o musgo começou, verde e fresco.
        A voz infantil não regressou. Dos outros cômodos do apartamento, o silêncio compacto como um monolito.
        O quarto inteiro pulsa aqui do outro lado desta cidade há algumas horas no vale verde lá onde Márcia esteja perto do polo norte, onde nasceu Papai Noel.
        Amanhã, quando ele estiver a caminho, de volta ao seu longínquo país, com a mesma roupa vermelha e a mesma barba branca, as infinitas pequenas formigas continuarão, para sempre, a percorrerem a trilha onde, certa vez, o muro dos fundos do prédio foi branco, antes que o musgo verde e fresco tomasse conta de tudo.


Texto original de 25 de dezembro de 1991 (agora, com algumas modificações).     

 

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Novamente: Pequeno tributo a Jorge Lescano, incluindo "Nocturno a La Turca" , do Autor
 


 
         Jorge Lescano foi um índio da Argentina, habitante de Buenos Aires, nascido na região de Entre Rios, vindo pequeno para a capital. Jorge, 'cabecita negra', como se diz em Buenos Aires (os índios são como os negros, para os racistas de lá). Autodidata, aos 9 anos reunia os vizinhos analfabetos para lhes ensinar as primeiras letras. Veio para o Brasil com 27 anos e aqui aprendeu o mais castiço da Língua Portuguesa com Machado de Assis, Guimarães Rosa e outros que tais. Desde que veio para cá só escreveu em nossa Língua. E com que precisão!

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         Jorge foi meu companheiro por largos anos e só nos tivemos que separar porque a grande e dolorosa palavra da minha vida foi e é, desde sempre, a palavra RENÚNCIA. Tentei a vida inteira, mas, não houve nem há como escapar dela e ninguém (nem eu) é responsável direto por isso... Ninguém, nunca. São as circunstâncias, são os imperativos da VIDA.
         Jorge, que foi sempre meu grande amigo, cuja partida deste Plano em 06 de maio de 2017 não consigo ainda assimilar...
 
A Jorge Lescano, in memoriam. Ave, pássaro! Ave!






"Nocturno a La Turca" de Jorge Lescano, meu ex-companheiro e sempre amigo

 
 
Em homenagem... póstuma ao meu caríssimo ex-companheiro e grande amigo de sempre Jorge Lescano,  trago aqui um texto que ele escreveu em 1991, em Castelhano (como ele preferia denominar o Espanhol),  a meu pedido, ele que, desde que veio de Buenos Aires para São Paulo, com 27 anos, começou a escrever apenas em Português, Língua que aprendeu a ler e a escrever com Machado de Assis... Guimarães Rosa... e outros mestres... Língua que em muito pouco tempo veio a dominar também.


                               
         No texto que trago aqui, a escrita se fez em sua Língua nativa.
         Ave, Jorge, tu que partiste em 06 de maio deste 2017. Ave! Ave! 
 

Quadro de Matisse, utilizado por Jorge Lescano como ilustração a seu texto





         NOCTURNO A LA TURCA – JORGE LESCANO




Es la hora en que las sombras cierran los horizontes del desierto. En el cielo rojo surge la primera estrella. El filo de la luna recorta el volumen de la tienda, guardada por un soldado de albornoz y alfanje.

Velos, alfombras, flores, adornan
la habitación.Entre almohadas y
alhajas y cojines, el aliento de un
animal cautivo. La mirada oscura
recorre el pelo negro echado sobre
el hombro; las perfumadas frutas de
los senos; las piernas fuertes, de
quien creó caminos en la arena.
Silencio de laúd y una mano desliza
sobre la piel damasco.

El que mató el dragón bajo otra luna
tiene a su cargo la protección de la
doncella. Su arma y corazón,
palabra y mente, presos están a
un juramento. Ni hombres ni cha-
cales permitirá que violen el círcu-
lo que su mirada abarca.

Se esquiva el sueño apesar de la no-
che y la fatiga; distantes el sultán y el
palacio con sus jardines de fuentes y al-
jibes de azulejos. La respiración del hom-
bre del otro lado de los lienzos. El rumor
de sus pasos. El blando sonido de los cas-
cos del caballo.

Mancha blanca en la oscuridad, la bestia
flexiona los miembros, inquieta: anhela el
día o el galope.

El hombre siente correr
la sangre por su cuerpo.

La noche es amplia y solitaria y silenciosa y cálida. ¡¿Un suspiro o la seda acaricia la seda?! En la vaina tintinea el alfanje. Al plenilunio: tules, tapicerías, piedras. La luz busca la piel prohibida, el perfil, el flanco, un muslo de la hembra. Espejismo imposible en la penumbra: sobre la filigrana de la alfombra azul, reclina Zuleika su dorada languidez felina. Lejanos, casi irreales, el bazar, los alminares, el cadalso. Cumplen los pasos su circuito y el soldado vuelve al punto de partida. Con los brazos cruzados sobre el pecho, otea el horizonte.

¡Alá, el Omnisciente, nunca duerme!

 
Nota. O Autor deixa em aberto se o soldado leva a mulher do deserto para o sultão que a aguarda em seu palácio na cidade. Seja qual tenha sido o final desta história "Alá, el Omnisciente, nunca duerme!"




Homenagem a Jorge Lescano, por Zuleika dos Reis, na transcrição aqui, de texto do Autor.




'Meu' índio, quando tinha ainda os cabelos longos... e bigode...no seu  apartamento cheio de livros, onde não cabia quase mais nada além de livros e de nós dois.