Carnaval e o seu final

Anos depois, a gente retorna de onde nunca deveríamos ter saído. Pensei que havia superado, mas tudo desmorona sobre mim e novamente pelo mesmo motivo. O karma da vida é surpreendente e mortal, por mais difícil que seja de acreditar.

Quando ela chegou, eu queria não ter aberto a porta, preferia ignorá-la como eu sempre faço do que ter que olhar na cara dela. Um lado de mim queria a distância, mas o outro ainda cedia.

Portão aberto, não olhei na cara dela e ela entrou como se estivesse na própria casa.

O silêncio entre nós era música para os meus ouvidos. Evitava conversa e discussão, o que me acalmava. Os passos ecoavam pela garagem, pela sala e pelo quarto. Ninguém abriu a boca para falar nada. Esqueceu um de seus pertences e veio buscar. Queria que fosse só isso, como ela sempre faz: surge, entra pela porta da frente, traz ou pega algum pertence e some pela mesma porta que entra, mas como se estivesse saindo pela porta de trás. Queria que tivesse sido como o usual, mas não, não podia. Sábados jamais iriam ser os mesmos depois desse dia.

Rodei a casa, evitei contato, só queria que ela fosse embora dali. Então ela parou na sala, esperando que eu aparecesse e eu, muito inocente, apareci. Já estava escrito, mas um lado meu ainda pensava em coisas positivas. O olhar dela era o mesmo de dias atrás...

Analisando minha postura e minha maneira de encarar a situação, ela perturbava, querendo que eu me ajeitasse, quase implorando para que eu a olhasse, mas a verdade mais profunda é que se eu a olhasse, eu seria tomado pelo impulso de beijá-la. A parte boa de mim pensava em mil situações inimagináveis até então, mas que seriam possíveis dias atrás; já a ruim, repetia para mim que toda escolha gera uma consequência e que, agora, eu teria que me responsabilizar pelo o que eu fizesse. Sempre fui medroso, então não seria tão difícil alimentar meu medo em receber um “não”.

Meus dedos tremiam pela ansiedade. Minha mente estava confusa e isso me causava dores no crânio que percorriam minha espinha dorsal até chegar nos punhos das mãos. A confusão se alastrava por todo o corpo. A perna balançava de nervoso, a mão tremia de ansioso, o olhar firme no chão era a única fuga, o coração apertava mesmo sem ela não dizer nada. Ela apenas me olhava...

Eis que puxou a cadeira, me pediu pra sentar também, mas recusei. Se eu sentasse, seria mais difícil de achar uma maneira para me tranquilizar. Deixei que a confusão continuasse circulando, junto do meu sangue, pelo corpo. Então ela começou a falar...

A calma na voz era impressionante, ela esperava por isso. Dizia coisas tão similares como antigamente, em um versículo da nossa história e águas passadas, onde eu quase me ajoelhava e implorava pelo seu amor e seu perdão. Eu não conseguia falar direito depois de tudo o que eu ouvia saindo da boca dela:

Eu quero que tu me deixe.

Já dizia Sant: “As palavras têm poder e buceta, dinamite.” Como uma bomba, meu mundo, já conturbado e bagunçado, explode e os vestígios voam para todos os lados...

A boca dela, o desenho, a maneira, a entonação, a voz, as palavras, empunhavam a facas metafóricas em minhas costas como se acabasse de ter sido traído e outras, no meu peito, como se acabasse de ter sido assassinado. Meus olhos ardiam, queria que fosse algum cisco, mas não era, era o sentimento entalado na garganta querendo sair, a expressão mais pura do amor existir. Era o choro de anos guardados, não por ela, mas por mim, depois de tudo o que senti.

Não deixei sair.

Depois que a perdi, anos atrás, eu comecei a valorizar cada detalhe de cada garota que se envolvesse comigo, por mais insignificante que fossem para mim, mas eu aprendi. Aprendi a analisar as pessoas de uma maneira mais poética. Meus olhos pousavam nos olhos das outras e por lá, ficavam, sem dificuldade. No caso dela, a situação era outra, mas, depois das palavras ditas, meu olhar voltou a ficar firme, por mais que estivesse cheio de memórias nossas. Eu nunca senti raiva dela, até mesmo quando soube que ela ficou com outros caras depois de mim, mas eu senti naquele momento quando ela se desfez completamente de mim.

“Eu quero que você fique bem e que você me esqueça. Não quero que fique mal por mim. Aprendi que a gente precisa encontrar o bem estar em nós mesmos.”

Eu queria conseguir, por mais belo e harmônico que seja, desejar o bem às pessoas depois de destruí-las em um período de tempo tão curto. Não haviam passado nem 30 minutos e ela já queria que eu ficasse bem. A minha mão tremia, mas dessa vez, não era mais de ansioso... Queria destruir a casa assim como eu estava destruído. Depois de uma longa conversa com meu psicólogo, eu contei a ela o que eu senti quando ela terminou tudo por mensagem – como sempre fazem – e eu senti mais uma confusão de sentimentos do que qualquer outra coisa. Mas, olho-no-olho, eu senti o mundo cair sob minha costas como caiu nas costas de Atlas ou como Paul von Hindenburg, sendo apunhalado pelas costas.

Eu não dizia nada, apenas concordava enquanto ela falava o que beirava o irracional. Eu queria apenas que ela fosse embora. O lado bom já estava escondido por dentro de mim, com vergonha, de ter pensado em puxá-la para perto quando ela estava em pé, analisando a mim, para quebrar o gelo. O lado ruim já dominava a situação interna dentro de mim.

Ela se levantou. Meu silêncio incomodou mais do que podia imaginar e agradeci ao lado ruim por ter me controlado. Queria ter mandado ela ir embora desde a hora que chegou, não dar atenção, mas eu não queria magoar ninguém, não queria ser um filha da puta, mas adivinha quem acabou se tornando um filha da puta?

Andando nos mesmos passos barulhentos até o portão, abri-o como quem abre para uma dama e ela parou novamente. Com o mesmo olhar, com a mesma voz, com a mesma pose e com outro pedido absurdo...

“Fica bem. Não fica puto. Não fecha o portão na minha cara.”

Assim que ela virou, a porta se fechou. Fechou com a minha força, meu sentimento, minha raiva e meu ódio ocultado por tanto tempo. Eu jamais senti tanto nojo de alguém como eu senti dela. Eu estava triste, claro, talvez me sinta se eu a vê-la pela rua segurando a mão de outro cara, mas é natural. As histórias do passado sempre mexeram com meu ser e isso se tornou tão clichê. Como em 2014, abrindo mão do meu presente e dando um passo atrás para o passado que já não existia mais; como em 2015, abrindo mão das possíveis histórias por medo de esquecer do passado marcante; como em 2016, negando criar laços duradouros por não querer desfazer o mesmo laço do passado; como em 2017, aceitando amar mais a mim do que aos outros, alegando estar se sentindo um pouco louco, mas no fundo, sabia que o motivo era por ainda estar sentindo algo que estava no passado.

Quando a porta se fechou, o lado bom surgiu novamente. Retornou do coma ou do afogamento, e tirou o que estava entalado. Os gritos pela casa retornaram; as vozes que saíam das paredes, voltaram; o mundo cinzento, reaparecia; as taças de vinho voltaram a se tornar a minha maior companhia...

Destroçado ou renovado, seja lá como vou estar. Talvez eu suma, aos poucos, ou aceite e me afogue naquele mar de antes, regado a bucetas e bebidas intrigantes. Perdendo minha alma, logo agora que eu queria tanto encontrá-la. Reencontrando meu antigo eu, logo agora que eu não queria mais ser eu. – J. Santos