Benéfico

O médico retirou-se do quarto da paciente com o semblante carregado, e fechou devagar a porta atrás de si. No corredor, a mãe e o pai da jovem aguardavam, apreensivos.

- Precisamos conversar - disse o clínico em voz baixa.

Desceram os três para a sala de estar no andar térreo do sobrado, com seus móveis coloniais de jacarandá e palhinha, as janelas abertas que davam para o jardim, emoldurando a quaresmeira florida de roxo contra o azul do céu da manhã.

- Bem, doutor? - Indagou Sebastião Fonseca, mãos dadas com sua esposa, Rita.

- Não é resfriado nem gripe, senhor Fonseca - declarou o médico, ar grave. - A menina tem fraqueza pulmonar.

- Fraqueza... pulmonar? - A mãe o encarou atônita, como se o próprio som das palavras queimasse em sua garganta.

- O doutor quer dizer... - começou a falar o pai, e parou no meio da frase.

- Moléstia consuntiva - atalhou secamente o clínico. - Ela precisará ficar isolada, por precaução. Embora haja um estudo em curso na Alemanha sobre se essa doença é ou não infecciosa, melhor não correr riscos. Talvez a sua família seja suscetível à este tipo de moléstia...

- Não compreendo... - disse descorçoado Sebastião Fonseca, mãos trêmulas.

- É conveniente que a menina tenha contato com o mínimo de pessoas possível... - prosseguiu o médico. - A roupa de cama e pessoal, utensílios, pratos e talheres, devem ser separados para uso exclusivo dela e lavados em separado, sempre com água quente. Eu vou prescrever alguns medicamentos e uma rotina diária, mas devem estar cientes de que tudo isso é paliativo. O que pode realmente influir na recuperação dela, seria uma mudança de ares. O Rio de Janeiro não é uma cidade das mais salubres.

- Mudança de ares? - Rita Fonseca continuava com um ar de incredulidade estampado no rosto.

- Seria benéfico - redarquiu o clínico.

* * *

O carregador deixou as malas dentro do quarto e retirou-se. Maria Cecília Fonseca teve a impressão de que acabara de chegar a um quarto de hotel de certa categoria, embora austero. Isto se não tivesse acabado minutos antes, de preencher a ficha de admissão ao sanatório Santa Edviges, em Belo Horizonte, e se já não houvesse uma outra jovem dentro do aposento, sentada à janela com um livro nas mãos: a sua colega de quarto.

- Olá! Você deve ser Maria Cecília! - Exclamou a jovem, erguendo-se e lhe estendendo a mão. Era magra, pálida, faces anormalmente rosadas, e o vestido amarelo que usava dançava-lhe ao redor do corpo, o que quase pareceria gracioso não fosse o resultado de uma doença mortífera.

- Você é Soraia? - Indagou Maria Cecília, apertando a mão oferecida.

- Eu mesma. Bom, a sua cama é a do lado da porta... por direito de antiguidade, eu fico com a cama ao lado da janela - declarou, com ar maroto.

- Parece justo - acedeu Maria Cecília, sentando-se em sua cama. A outra também sentou-se, à frente dela, e pousou o livro aberto, lombada para cima, sobre a colcha. Pela grossura do volume, imaginara que poderia tratar-se de "Assim Falava Zaratustra", mas logo percebeu que se enganara redondamente.

- "Reinações de Narizinho"? - Questionou, com um sorriso.

- Já leu? Eu gosto... - declarou a outra. - Ultimamente, tem sido a minha válvula de escape da chatice do Santa Edviges... Monteiro Lobato e o Arnaldo.

- Arnaldo? Escreveu algo que eu conheça? - Retrucou Maria Cecília intrigada.

- Arnaldo não é escritor. É enfermeiro - Soraia piscou-lhe o olho.

Maria Cecília ficou embaraçada.

- Oh... você tem um namorado? Aqui dentro?

- A gente não se beija - explicou Soraia, erguendo as mãos. - Pra que ele não pegue...

- Uau - foi a única coisa que Maria Cecília conseguiu responder.

* * *

Maria Cecília olhava incrédula para a cama vazia em frente à sua, a colcha cinza esticada sobre o lençol branco, o travesseiro de paina. Pela janela aberta, uma mangueira carregada de frutas fazia sombra contra o céu azul da tarde. Fora tudo tão rápido... a piora do estado de Soraia, a tosse sanguinolenta, a internação na enfermaria do sanatório, o óbito.

Arnaldo, o enfermeiro, parou na porta do quarto, gorro nas mãos.

- Desculpe se a interrompo... precisa fazer a sua caminhada diária... é parte do tratamento.

Maria Cecília ergueu os olhos para Arnaldo, parecendo vê-lo pela primeira vez através de uma nuvem de lágrimas.

- Ela acabou de ser enterrada... e você vem me falar de caminhada? Não sente dor? Era minha amiga... sua namorada!

- Eu sinto dor, - respondeu simplesmente Arnaldo - e não posso partilhar isso com você, até porque, provavelmente está sentindo o mesmo. Mas, o melhor que podemos fazer pela memória da Soraia é tentarmos continuar nossas vidas da melhor maneira possível.

Estendeu a mão para a jovem.

- Vamos. Está um belo dia lá fora. Soraia provavelmente teria escolhido partir num dia assim, se ainda estivesse consciente quando faleceu.

Maria Cecília enxugou as lágrimas com um lenço. Depois, estendeu a mão para Arnaldo e ele a puxou, com um gesto firme. Caminhando lado a lado, saíram do quarto para o corredor de tábuas corridas, e depois para o exterior do sanatório, laterais florestadas de mangueiras que recendiam à terebintina das mangas.

Caminharam em silêncio por um caminho sombreado, até que Maria Cecília resolveu falar.

- Lembrei-me de uma frase de Nietzsche que Soraia costumava repetir... ela não gostava só de Monteiro Lobato.

- Ela só me falava de Monteiro Lobato - declarou Arnaldo. - O que esse Nietzsche dizia?

- "Desde que há homens, o homem tem-se divertido muito pouco; é esse, meus irmãos, o único pecado original".

- E o que isso quer dizer, exatamente?

Maria Cecília parou no meio do caminho e olhou para Arnaldo, mãos nas cadeiras, numa pose de desafio.

- É sério que vocês nunca se beijaram?

- [20-02-2018]