A pureza do amor, a violência da dor - Capítulo 1 (A primeira noite)

A vida com Matias nunca fora perfeita, mas piorava de maneira crescente  desde a morte de seus pais. Jovem, insegura e sem ter mais a quem recorrer, Raíssa aceitava tudo o que a ela era imposto, desde as implicâncias da sogra cruel até as traições do homem que jurara lhe amar. Tudo tornara-se ainda pior com o nascimento de Juliana, sua querida filhinha, que apesar de ser  adorável, mostrara-se fraca e adoentada logo nos primeiros meses de vida. Para Matias, isso era um insulto a sua masculinidade, e assim dizia ele:

-- Como você deu a luz a uma criança doente desse jeito, Raíssa? Eu sou saudável e forte de mais para gerar uma menina assim. Dê certo me traiu e foi amaldiçoada com um bebê tão doente!

As palavras agressivas eram logo seguidas por bofetadas raivosas, que a pobre Raíssa aceitava sem impor-se. Finalizada a surra, ela servia-lhe a janta, cuidava de Juliana e punha-se de baixo das cobertas, onde pranteava até que o suave véu do sono a cobrisse. Sempre era a mesma rotina, sempre as mesmas palavras dolorosas. Esperança era algo pelo qual não  lutava, pois sabia que sua vida jamais teria alguma chance de melhora.

Portanto, resignadamente  apenas  acordava, fazia seus deveres de esposa, cuidar da casa, manter a horta em dia, regar as flores e preparar a comida. Depois, despertava seu bebê, amamentava-o e o levava para passear pelo bosque, atrevendo-se algumas vezes a atingir a praia afim de que a pequena pudesse ver o mar.

-- Veja quanta água, Querida! -- Dizia sorridente, contando a filha algumas das histórias que ouvira do pai enquanto crescia, sobre grandes embarcações que levavam mercadorias exóticas e piratas perigosos que sequestravam mocinhas puras para suas terras.   Aquelas histórias eram demasiadamente  fantasiosas, mas traziam a ela ecos de uma vida distante, ecos de uma menininha sorridente que ela jamais seria de novo. Esperava, somente, que sua pequena Juliana tivesse a chance de sê-lo.

Com exceção dos passeios citados, a única outra alegria de Raíssa era as escapadelas que dava após notar que Matias dormia a sono solto, nas noites em que apanhava tanto que apenas o contato com a natureza era capaz de revigorar seu espírito. Sempre que possível, caminhava pela aldeia silenciosa, e  guiada pela luz das estrelas atravessava o bosque rapidamente, alcançando a praia e sentindo um alívio ao avistar as ondas. Foi em uma dessas escapadelas que conheceu Daniel.

Na noite específica, um vento frio vinha do mar, soprando dentre as árvores do bosque e mesclando o perfume  da maresia ao das flores recém desabrochadas, em um aroma inebriante. O som de pássaros noturnos fazia-se  presente,  assim como o suave cantarolar de insetos. No céu, a rainha da noite elegantemente ocupava seu lugar, espalhando a luminosidade prateada pela terra e observando a vida lá em baixo com seu ar solene, acompanhada por suas fiéis aliadas, as estrelas.

De pé com a brisa a acariciar-lhe os cabelos, Raíssa mantinha o olhar no mar, concentrada em seus próprios pensamentos. Em noites como aquela, sentia-se livre, pronta para explorar o desconhecido, preparada para entender os mistérios que a escuridão resguardava em seus mantos. Sem medo nem nenhum tipo de receio, caminhava pela areia dourada, mandando para longe as recordações das muitas brigas que vinha tendo ultimamente em casa e substituindo-as por um sentimento de paz, tão sutil e terno que a trazia lágrimas aos olhos.

De repente, passos no bosque a assustaram. Em todo o tempo que visitava a praia, jamais fora vista e nem seguida por ninguém, de modo que estranheza tomou conta de seu coração ao sentir a presença de outra pessoa por perto.

-- Quem está aí? -- Perguntou, sua voz delicada sendo carregada pela brisa até a figura que saía da sombra das árvores e ficava visível a luz da lua.

Os olhos do desconhecido encontraram-se com os seus,  olhar verde contra olhar azul, e foi como se seus corações se tocassem durante um só segundo, um fiapo de tempo na imensidão da vida, fiapo de tempo este  que mudaria para sempre o rumo de suas histórias. Silêncio fez-se presente, enquanto ambos os jovens tentavam acalmar os sentimentos e agir coerentemente.

-- Olá, eu sou Daniel, sou filho de um morador da aldeia e acabo de chegar de viagem. -- Disse ele, e sua voz suave como veludo despertou algo dentro de Raíssa. Era como se voltasse a ser apenas uma menina, como se tivesse o coração leve e fresco com a inocência da juventude mais uma vez.

-- Olá! Me chamo Raíssa, moro na aldeia e estou aqui apenas passeando. -- Explicou-se.

Um sorriso encheu o rosto do rapaz, enquanto este aproximava-se da pequena figura feminina. Como ela era adorável, com aqueles olhos grandes e aqueles longos cabelos negros.  Daniel não acreditava no amor, mas seus princípios sobre isto estavam prestes a mudar.

-- Não acha perigoso estar aqui sozinha tão tarde? -- Questionou, parando de caminhar ao ver-se ao lado dela.

-- Venho sempre aqui, e a primeira vez que sou surpreendida é essa. --  --A jovem respondeu, com uma expressão na bela face que seu interlocutor não conseguia identificar. Era como se estivesse temerosa, curiosa e emocionada, tudo ao mesmo tempo.

-- Então hoje é seu dia de sorte, pois eu sou um bom rapaz e não lhe farei nenhum mal. -- Falou com um leve sorriso.

A conversa prosseguiu de maneira tranquila, ambos contando um pouco sobre suas vidas e gostos. Descobriu-se que Daniel era filho do governador da aldeia, e que passara os últimos 10 anos viajando por outros reinos, afim de explorar e adquirir conhecimento. Enlevada pela magia das histórias, Raíssa ouviu durante longas horas sobre suas aventuras, sentindo-se outra vez como a criança que sentava-se no colo do pai e escutava sobre povos desconhecidos e terras inexploradas. Distraída como estava, acabou por esquecer de citar  detalhes maiores de sua vida, como por exemplo o de que era casada e de que tinha uma filha ainda pequena. Por descuido, atentou-se apenas em contar suas peripécias durante a infância, coisas engraçadas que divertiam Daniel, divertindo-a também. Risadas despreocupadas enchiam o ar, o som encantadoramente misturado ao bater das ondas nas rochas, ao cantar dos pássaros e ao sussurrar do vento.

Conversaram noite a dentro, como se o tempo lhes pertencesse, como se nada devessem ou temessem. Lá pelas tantas, porém, o cansaço causado pelo sono começou a dominá-los, e os jovens caminharam de volta a aldeia, separando-se no fim do bosque e tomando cada um o seu caminho.

    Com ele,  ia o doce som da risada de Raíssa, e com ela, o brilho nos olhos verdes de Daniel quando este contava sobre suas aventuras.

Estava claro que sonhariam um com o outro naquela noite.

Continua na parte 2.

Triz Fernandez
Enviado por Triz Fernandez em 24/02/2018
Reeditado em 24/02/2018
Código do texto: T6263182
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