O CANTO DA SEREIA

A poucos metros de casa, as águas batiam  fortemente nas pedras artificialmente colocadas, para conter a ressaca do mar. Robert   estendeu a mão para desligar o abajur.
— Oh, não!... Tenho medo do escuro.
— Logo vem a aurora dissipar teus medos.
— Por que os medos se ocultarem à luz do dia, e nos atormentam, poderosamente assustadores na escuridão?
— Para explicar os medos noturnos é preciso estabelecermos um paralelo entre sonho e pesadelo.
Morgana ficou curiosa.
— Podes explicar isso, sem tomar valioso tempo de nosso sono?
— Pesadelo é a explosão de problemas reprimidos, que se manifestam em sonhos aflitivos. Quem nasceu no campo, sonha com boi querendo chifrá-lo. Isto é reflexo de seus medos que  se transformam em pesadelo. Já o sonho tem um leque muito vasto de significados.
Robert   quebrou com uma gargalhada a concentração de Morgana, interessada que estava em desvendar os mistérios do sonho e do pesadelo.
— Por que riste?
— Lembrei-me de um verbete de Machado.
— Qual?
— ‘O sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela.’
— Safadinho! Quase me sufocou com teus beijos.
 — Gostei do ‘safadinho’! Na variante linguística carioca, isso significa menino travesso. E fazer travessuras é muito bom!
— Não me fale em Rio de Janeiro, me dá medo de bala perdida!
— Durmamos de mãos dadas, a aurora não tarda chegar.
O dia  era todo amanhecido.
 Robert   precisava ir ao escritório passar as últimas recomendações ao substituto, e providenciar passaportes. Arrumou a escrivaninha, despachou documentos, deixou recados na tela do computador, e mais tarde,  ligou para o Rio.
— Quero falar com Ravenala!
— Pode falar, maninho! Não reconheces mais minha voz?
— Sim, sim, é que a ligação não está boa.
— Não é a ligação. Aqui está uma barulheira infernal. Estão reformando o prédio.
— Ih, não me fale em inferno. Estou com a passagem comprada para o céu.
— Que brincadeira é essa de morrer?
— Morrer nada! Viajo em lua-de-mel nos próximos dias.
— Mas que surpresa! Nem me convidaste para o casamento!...
— Não convidei por temer que não viesses.
— Se tu casasses, ainda que fosse com uma ogra, eu iria à festa.
— É casamento de mentirinha. Não houve papel passado nem no civil nem no religioso.
 — Quem é a felizarda?
— Adivinha!
—Não faço a menor ideia. Não conheço ninguém em São Luís do Maranhão!
— Esta tu conheces.
—Tenho certeza que não.
— Conheces!
— Para com isso, diz logo, engravidou uma leoa no cio?
— Não! Não sei. Talvez!...Ela foi nossa colega no Marista.
— Ah!...a Morgana... Sempre quis ser minha cunhadinha. O Victor Augusto deu de ser padre e ela pegou o outro irmão, meio postiço, é claro, mas um bom irmão!
— Posso falar com a Morga?
— Estou no escritório. Ela, em casa. Vou passar o número.
Mal acabara de fazer o desjejum, o telefone anunciou a presença de uma pessoa na linha.
— Olá, cunhadinha. Parabéns pela decisão que tomaram. Não é porque ele é meu “irmão”, mas fizeste, verdadeiramente, uma boa escolha.
Ravenala  não quis dilatar a conversa. Estava de mente e coração abertos para acolher Robert   e Morgana em escala no Rio de Janeiro, antes da viagem deles para Cancun. Marcou o casamento dela  para a semana em que eles estivessem de passagem pelo Rio. E se casou de vermelho com um arranjo da mesma cor no cabelo, não exatamente um arranjo, uma rosa, apenas.
Robert    não estava na fila para cumprimentar os nubentes.  Caminhava a Mariz e Barros sentindo-se um cacto. Adiante, tomou um táxi para Copacabana e se sentou ao lado do mineirinho de Itabira, que folheava as páginas de seu livro de ferro. O poeta gauche não dava conta de olhar as deusas que desfilavam de biquíni, a dois palmos de seu nariz.
— Com que pelejas? — Indagou Robert   
— Luto com as palavras, mas minha luta é vã, disse o mineiro.
Robert   provocou o poeta-maior, com um jargão dos tempos de Sêneca e Petrônio:
Virtutem verba puta.
Enquanto dizia essas coisas, uma loira escultural, parou, pôs as mãos na cintura, balançou as ancas na frente deles e perguntou:
— Qual dos dois me chamou de puta? Se nenhum responder, vou ter que arrebentar os dois.
— Não minha filha, ninguém te chamou de puta. Apenas Robert   me perguntou se palavras são virtude...
Mineirinho fechou o livro, despediu-se de Robert   e fez menção de partir.  Robert   deu um passo adiante, como se quisesse impedir um velho atobá de alçar voo. Acariciou a cabeça bronzeada do homem de ferro e gritou: “Você é poeta, eu faço rimas!”
— Alguém sabe notícias de Robert  ?— um amigo em comum.
— Há três dias não se tem qualquer notícia dele — Respondeu Ravenala.
— Rava! Se queres, cancelaremos nosso cruzeiro — disse Daniel.
— Dan, onde quer que eu esteja, serei  perturbada com o desaparecimento de Bobinho.  Sabes que ele era como um irmão para mim. Prefiro manter a viagem tão antes sonhada.
— Robert   sequer foi declarado presumidamente morto. Por enquanto, é apenas um desaparecido, como tantos da ditadura militar.
— Ainda assim, é quase certo, que nenhum deles está vivo.— E continuou — Espero que nessa viagem, o  vento do mar, acoite meus cabelos, e leve para bem longe os pensamentos de morte.
O semblante dela, antes austero e sombrio, se refez sereno e encantador. Sabia desfazer o nó da garganta com um sorriso que, ainda que fabricado, ia-se tornando angelical e franco, na medita em que enclausurava sua dor numa cela. Fechava e jogava a chave fora.
Daniel, ainda segurando a mão dela, repetiu o que dissera antes:
— Se queres, cancelaremos nosso cruzeiro.
— Quero ouvir o canto da sereia.
— Então iremos, minha sereia!
Daniel entendeu a que canto da sereia Ravenala se referia. Porém, não gostou da intimidade dela com Robert  , tratando-o por Bobinho, afinal, Bob e Ravenala foram quase casados. Relevou: “Eles são quase irmãos.” E procurou expulsar, da sua mente, a cena quando na Basílica Santa Terezinha, entregara Ravenala a Robert,  como Abraão entregou Sara ao faraó. A  história parecia se repetir: assim como o faraó devolveu Sara a Abraão, também Robert   devolveu Ravenala a Daniel.
A angústia represada, tentava romper a barreiras do passado e lançar, violentamente, águas turbulentas na beleza do projeto de vida que tinha a dois. Daniel não permitiria que essas coisas acontecessem, e voltou a refletir sobre o mundo encantado da sereia, para   evitar que o ciúme invadisse  sua mente. Abriu, pois, a bagagem de conhecimentos sobre a vida de uma sereia, adquirida em diversas fontes oficiosas: ‘A lenda da sereia, pode vir de uma verdade, muito depois descoberta. Sim. A lenda pode  estar relacionada com a realidade das baleias. A baleia canta, emite som, normalmente, na época de acasalamento, daí, os antigos atribuírem aquele misterioso canto, a um ser desconhecido e fantasioso chamado Sereia, uma vez que a baleia só canta, quando está submersa, por tanto, não exposta ao alcance visual dos humanos.’ E Daniel concluiu, extraindo alguma verdade da fantasia: “A sereia canta, quando está  à procura de parceiro. A lenda, enfiam, acalmava os marinheiros, atormentados pela solidão de meses a fio,  sem contato com o mundo, senão àquele restrito à tripulação dos navios de guerra ou cargueiros, composto praticamente por pessoas do mesmo sexo, ou seja: homens, porque naquele tempo o contingente militar não alcançava o sexo feminino. Em suas longas jornadas em alto-mar, os marinheiros alimentava suas fantasias, esperando que a qualquer momento, uma sereia desnuda, assentada numa pedra, pudesse surgir a qualquer momento. E sua penúria era aliviada, dia  após dia, pela expectativa de uma surpresa agradável.
De mala e cuia os nubentes tomaram um táxi para o porto na Baia de Guanabara.
— Bem-vindos ao Sutton Hoo, o navio mais seguro que o homem  construiu. Nem Deus afunda o Sutton Hoo.
— De Deus não se zomba, replicou baixinho, Daniel.
— Não ouvi bem...
— Não gostei dos modos do comandante.
— Que modos?
— Esquece, Rava.
A mão estendida do comandante apontava a direção do embarque.
— Venham realizar o melhor sonho de sua fantasia. Venham ver o mundo que poucos humanos têm a oportunidade de conhecer.
— Bem-vindos a bordo — disse a comissária em  cujo casaco, podia ver-se duas divisas e uma medalha  dourada na lapela.
— Aquela marinheira te olhou de modo diferente— resmungou Ravenala.
— Para Ravinha...
  Ravenala  e Daniel ocupam o camarote que outrora  pertencera  ao rei Sigebert. Viajaram sete dias e sete noites, encantados com o entardecer em alto mar: Montanhas se elevam e se quebram barulhentas chocando-se com o costado do navio.
Durante os primeiros  dias, navegaram sem maiores problemas, nada mais do que um susto, para ‘marinheiro de primeira viagem’. Mas... No sétimo dia, naufragam. Nadararam agarrados nos destroços do navio e alcançam a praia.
— Meu bem, não te desgarraste nem por um momento, desta pequena mala. Não te preocupaste em salvar minha vida?
—Sem ela não poderei salvar-te. Aqui estão meus inventos, e algumas peças que podem tirar-nos de uma ilha deserta.
— E quem disse que quero sair da ilha? Vamos procurar alimentos, construir um abrigo e família.
— Criar um novo mundo?
— Digamos um mundo novo! Sem violência e sem guerra. Não aguento mais o inferno em que se transformou a vida na  cidade. Dou glória a Deus pelo naufrágio, que salvou nossas almas do inferno.
Daniel não questionou, de fato, aquele inferno ele conhecia:
Parapapapapapapapapa.
Vila Isabel faz festa. O helicóptero da  Polícia Militar, foi abatido. Os jornais dão notícias que atraem mais bandidos para o mundo do crime, mostrando que vale a pena estar fora da lei. E os meios de comunicação televisiva mostram o apogeu, e a fama de artista dos gêneros musicais que fazem apologia ao crime.
 
 Parapapapapapapapapa...Morro do Dendê...
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."