O Universo de Olívia - Perfeitamente normal

Dizem que, quando sorrimos para algo ou alguém, nós guardamos o retrato daquele momento em nossas almas. Mesmo aqueles que não nos lembramos estão guardados em algum canto do nosso ser. Esse foi um velho ditado que aprendi na cidade onde eu morava. Quando penso nisso, sempre lembro de minha avó sorrindo para mim enquanto eu tentava alcançar os galhos mais altos das árvores.

Não direi que tive uma relação de amizade com Olívia na minha infância. Na verdade, poucos momentos como aquela nossa primeira troca de palavras ocorreram naquele período. Acabou que mudei de escola no ano seguinte e fiz novos amigos, que se tornaram recordações a partir do momento que entrei no Ensino Médio. Acho que o sentido de “renovar” os amigos serve justamente para nos esquecermos das amizades eternas de antigamente, mesmo que o eterno fosse apenas naquele ano.

Por alguma coincidência da vida, Olívia voltara a ser minha colega de classe. Quando eu era criança, eu não entendia o que a professora queria dizer com “condição especial” ao se referir à ela. Na verdade, nem mesmo na época do Ensino Médio eu entendia isso. Eu sempre achei ela uma garota normal, às vezes um pouco distraída do mundo, mas perfeitamente normal. Como todo ser humano, ela tinha suas peculiaridades.

Naquele ano, Olívia voltou a ser zombada por outros alunos da escola. Eles caçoavam de seu cabelo e diziam que a cor dos olhos dela lembrava lodo e outras coisas nojentas, mas isso não parecia afetá-la. Era como se ela estivesse em um outro mundo e não permitisse que ninguém entrasse nele. Com o tempo, as pessoas pararam de incomodá-la e voltaram a cuidar das próprias vidas.

Eu a observava todos os dias com curiosidade. Ela ainda carregava aquele suposto animal consigo dentro de sua bolsa, como se ele fosse uma parte crucial de sua jornada pelos trilhos da vida. Às vezes eu me perdia em meio aos seus gestos e suas análises da fauna e flora apresentadas no livro de biologia. Era como se ela realmente pudesse tocar a figura da orquídea apresentada na página 127, como se Olívia tivesse voltado para seu próprio universo em meio a diversas pessoas.

Durante o segundo ano, ela teve bastante dificuldade com a matéria de história. Sua dificuldade de relacionar nomes e datas importantes permitiu que eu me aproximasse dela mais uma vez. Por eu ter uma facilidade e altas notas naquele conteúdo, fui designado a ser tutor de Olívia até que ela recuperasse a média perdida. Mesmo próximos, nossos assuntos eram limitados a momentos históricos e pessoas que foram importantes em diferentes. Não tínhamos muito tempo para estudar, tendo em vista que ela deveria chegar em casa cedo e eu só conseguia ajudá-la após o término da última aula mas, mesmo com essas condições, eu pude aprender muito sobre seu universo.

Em uma das nossas sessões de estudo, percebi que eu estava mais nervoso que de costume por estar perto dela. Não sabia se era por causa do conteúdo de história, do templo nublado ou das sardas que presentes no rosto de Olívia. Era como se a monotonia daquele lugar estivesse gritando nos meus ouvidos, dizendo para eu sair e fazer algo mais produtivo, como caminhar pela praia ou passar o resto do dia no Twitter.

- Então foi isso que Luis XIV quis dizer com “L’État c’eis moi” – Indagou Olívia, com as mãos sob a mesa,

- Exatamente! – Respondi com entusiasmo e nervosismo na minha voz - Você está progredindo bem, Olívia!

Enquanto eu limpava a gota de suor que escorria de minha testa, eu pensava em mil maneiras de escapar daquela sala. A sensação de ter mil olhos olhando para você a cada instante estava me agonizando e eu precisava fugir daquilo que me incomodava. Era como se Elvis tivesse voltado a vida cantando Jailhouse Rock na minha cabeça.

- Por que suas mãos tremem? – Olívia perguntou, enquanto colocava uma de suas mãos sobre a minha.

- T-tremer? – Hesitei ao falar – D-d-do que está falando?

- Suas mãos, Ned, estão tremendo. Por quê?

- Olívia... – Eu não sabia responder aquela pergunta. Não entendi porque meu nervosismo estava transparecendo justamente naquela hora – Vamos... sair daqui? – Perguntei, inseguro do que eu estava falando – Ir para outro lugar?

- Mas o tempo de estudos não acabou, Ned – Olívia respondeu, dando um sinal de confusão.

- Continuamos isso depois, pode ser? – Disse essas palavras no mesmo momento em que me levantava e colocava minha bolsa nas costas. Olívia ficou parada, sem entender o que estava acontecendo. Meu corpo apenas agarrou sua mão e suas coisas para fora daquela sala.

Os olhos dela demonstravam confusão com tudo aquilo. Eu mesmo não entendia o que eu estava fazendo. Quando me dei conta, estava com ela, parado ao lado de uma floricultura.

- Ned, por que estamos aqui? – Indagou Olívia mais uma vez. Eu não tinha resposta para aquela pergunta. Meu orgulho me impedia de dizer que eu havia sofrido uma crise claustrofóbica naquele momento. Ninguém podia saber dos meus ataques de pânico.

- Olívia, me desculpe – Respondi com insegurança – Eu só... não consegui ficar lá dentro com essa ameaça de temporal vindo por aí – Consegui mentir com uma certa discrição – Afinal, chegaríamos em nossas casas ensopados, não é mesmo? Olívia?

Quando me dei conta, Olívia estava na porta da floricultura, tocando na orquídea que estava em exibição. A delicadeza que ela teve para tocar nas pétalas da flor me acalmou de um jeito que eu havia esquecido completamente da mentira que eu estava inventando. Era como se a visão que eu tive na sala de aula tivesse voltado de uma forma mais real.

- Não precisa mentir para mim – Disse Olívia, com os olhos concentrados na orquídea.

- O que disse? – Indaguei, voltando do meu mundo de imaginação.

- Eu tenho medo do escuro e de ficar sozinha. Tenho medo de perder meu bichinho de pelúcia. Tenho medo de não entender realmente o significado das palavras. Tenho medo da desordem e de quando as coisas dão errado. Por isso, não precisa mentir para mim. Se você tem medo da chuva ou de trovões, não precisa ficar assustado. Pode segurar minha mão, se quiser.

Eu não consegui dizer mais nada naquele instante. Olivia olhava fixamente para a flor de orquídea, com um sorriso no rosto. Suas palavras ecoavam na minha mente e, por um momento, eu senti que não precisava ter medo do mundo. Foi como se, mesmo sem entender o que realmente se passava dentro de mim, ela fosse a solução dos meus problemas.

Dizem que, quando sorrimos para algo ou alguém, nós guardamos o retrato daquele momento em nossas almas. Olívia guardava o retrato daquela orquídea dentro de si e eu guardava o retrato daquela garota sorrindo em frente a floricultura dentro de mim. Eu acho que foi nesse instante que eu entendi o porquê ela era especial.

Naquele exato momento, éramos apenas dois adolescentes parados na calçada, enquanto as gotas de chuva caíam sobre nossas cabeças.