Ana
 
     Ana vivia como os demais naquele pedaço de rua. Tinha os olhos amendoados, cabelos lisos e um rosto bem formado. Era possível se deduzir que, com alguns poucos cuidados, revelar-se-ia por detrás daquela pessoa uma linda jovem. Mas, ali, em meio a tanta sujeira, convivendo com os companheiros do crack, não aconteciam novidades.
    Eles insurgiam-se bem cedo do meio de trapos e papelões debaixo da marquise daquele cinema abandonado. E logo estavam distribuídos pelas imediações pedindo pão, salgados e cafezinho aos passantes. Não era fácil, mas sempre aparecia alguma alma caridosa. Ana não se sentia confortável em pedir. Era órfã de pai e mãe, mortos em um acidente e com eles, até os 15 anos, adquirira bons princípios. A família era pequena, com apenas um irmão, hoje sumido no mundo, tendo ficado a adolescente sob os cuidados de uma vizinha. Uma história mal explicada com o marido fez com que a vizinha a abandonasse nas ruas e, em pouco tempo estava tragada pelos companheiros. De vez em quando pensava em procurar por parentes que viviam longe...
    - Olhe aqui Ana, consegui um pastel. Vou dividir com você, disse  Espeto, rompendo um profundo silêncio da nossa protagonista.
     Ana sorriu e decidiu pegar um pedaço. Era muito pouco para os dois e a forma de vencer a fome de um longo dia era partir para as pedras. Não! Ela não podia mais usar aquilo... Estava preocupada, mas, assim mesmo eles queimaram, naquela tarde, muito mais pedras do que o normal.
    Espeto era o doce namorado e protetor que, carinhosamente, dividia tudo com ela. Tinha este apelido por ter tentado, quando adolescente, agredir a um colega de rua com um espetinho de churrasco. Ana tinha algo a dividir com ele, mas faltava-lhe coragem. Imaginava que ele não aceitaria saber daquela gravidez e decidiu esperar outro momento. Seu protetor também viera de boa família. Talvez por isso tivessem esta empatia um com o outro.
     Os dias se passavam. A barriga crescia e Espeto parecia desconfiar daquelas mudanças, mas imaginava que fosse consequência da vida de pouca higiene ou mesmo um efeito desconhecido das pedras. Também a ele, faltava a coragem de perguntar.
    Caída a noite e ainda sob os efeitos da droga, Ana dormiu e sonhou com o nascimento de seu bebê. Estava em um quarto com pouca mobília e sentia muito frio. Sozinha, numa estranha cama, procurava pelo namorado, sentindo a chegada da criança. A qualquer momento poderia trazer à luz aquele ser que só ela sabia existir dentro de si. Até que sentiu dores insuportáveis e escutou o choro do seu menino. Sim! Era um belo menino que acabara de nascer e tinha o rosto do pai. Radiante de felicidade, a jovem lembrou-se dos avós da criança e, de repente, se viu conversando com eles, que estavam, como dois anjos, bem em frente à sua cama:
- Que saudades! Por que me deixaram? Por que todo mundo me deixou?
- Minha filha, nós não te abandonamos. Viemos buscá-la. Vamos criar este bebê juntos. Ana sorriu de felicidade.
    Já amanhecia quando Espeto quis acordar a amada. Ela não se moveu e ele, pressentindo o pior, levantou-se pedindo socorro pela rua. Em desespero, voltou-se novamente à sua paixão e recostou-a no colo. Ela abriu os olhos e, com um sorriso angelical, balbuciou:
    - Tivemos um bebê muito lindo! Meus pais vão nos ajudar a criá-lo.
    Ana havia muito tempo, estava frágil e subnutrida. Ouvi do médico que a atendera naquela manhã, que aquele fora um caso de pré-eclâmpsia, seguida de uma parada cardíaca, ambas provocadas pelo uso do crack. Estava com apenas 18 anos.
    Esta é a história que eu costumo contar para os meus amigos nesta rua. Ainda vivo por aqui fazendo as mesmas coisas e espero ansioso o dia em que vou me encontrar com Ana e o nosso bebê.
 
Assinado: Espeto
 
 
Luciano Abreu
Enviado por Luciano Abreu em 28/03/2018
Reeditado em 03/04/2018
Código do texto: T6293186
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