Tudo estava escuro, muito escuro... Nem mesmo o clarão da aeronave em chamas, ele podia ver. Teria perdido a visão? Rompido o  cristalino? Era cedo para afirmar ou negar sequelas. Que prova lhe daria o céu de que estava vivo? Agradeceu a Deus,  porque sentia dor. Logo, estava vivo. Talvez cego. Visto que não enxergava uma nesga de luz na escuridão da noite.  O medo invadiu sua alma: Cego sobrevive  sozinho numa ilha? Como encontrar alimento? Não era hora de pensar em comida. Para que se preocupar? Os mortos não comem, nem os vivos  podem enxergam no breu da noite. Restava-lhe esperar por resgate, se antes não fosse tragado pelas águas ou engolido por um peixe.

Recordou-se da conversa com o pai.

— Peixe grande comeu o profeta?

Sem esperar a resposta, (embora o soubesse), Fernão agarrou-se  ao paredão rochoso, que separa as águas do elemento sólido, e lutou contra as ondas que tentavam arrancá-lo como se ele fosse um mexilhão, grudado numa  pedra. Ouviu o grito de uma gaivota e sentiu sobre sua cabeça as negras asas de um corvo. Estava prestes a ser comido. 

 No recuo das águas, o náufrago respirava e vez por outra, uma golfada penetrava suas narinas, arrancando-lhe em ondas alternadas o sopro de vida.  Lentamente, desgarrou-se do paredão, caindo estatelado sobre pedras pontiagudas. Arrastou-se, até conseguir levantar apoiando-se na muralha. Veio a aurora rasgando o véu da noite e Fernão pôde ver corpos que boiavam levados pela correnteza. A aeronave também viajava,  em partes menores, para o abismo insondável do mar.   Ele pôs-se de pé. E gemeu. E chorou. E sorriu... É doce morrer no mar.
O nome de Fernão Capelo,  constou, não necessariamente, da lista oficial dos mortos, mas, entre os desaparecidos.  A Marinha Brasileira recolheu corpos em águas internacionais. Entre os mortos, Vannini Lopes Potiguará Saboia  Capelo; comandante Hemor Bar-Hemor de Siquém, um padre, uma freira e mais de meia centena de corpos ainda não identificados. Enlutado, o Salão do Livro listou o nome dos escritores mortos no acidente aéreo. Paola abriu lentamente os olhos, e leu seu nome na faixa,  logo abaixo  de seu  poema ‘Passeio sem rumo’. Agora podia viajar para qualquer parte do mundo, em fração de segundos, e se quisesse, poderia estar em vários lugares ao mesmo tempo. Então foi para Dakar. Viu as freiras de sua congregação, consolando os aflitos. Esperavam a irmã Paola, choravam por ela. Paola  estava ali e ninguém via. 

— A natureza árida e fria, habita o coração pacífico de tantos poetas — disse André, passando as vistas na faixa — Quantos sonhos, quantos voos literários interrompidos! Tentou conversar com Paulo Valença, falar das últimas produções depositadas no Portal. Paulo não o ouvia, não respondia nem mesmo aos acenos de mão. Ainda na loja, Ravenala ligou repetidas vezes para o número da mãe de Fernão. O telefone tocou... tocou... Tocaram o interfone, bateram à porta. Tudo silente... O  Corpo de Bombeiros foi acionado. 
 Infarto, disse o paramédico. 
Ravenala foi levada em espírito a uma praia coberta de ossos ressequidos e uma voz profética ecoou em seu coração:  O mar devolverá à praia todos os corpos que engoliu, e a terra prestará contas dos mortos guardados em suas entranhas. Alguém tentou acordá-la massageando-lhe a face. Ela despertou como se voltasse de um pesadelo.
— Saiu a lista oficial de passageiros do ABS 815?
—Sim, a lista de mortos e de desaparecidos.
Intrigada, a viuvinha questionava: Será que Deus predeterminou a morte de 214 pessoas de uma só vez,  e os colocou no mesmo voo? para economizar acidentes? E segurou um sorriso, abafando-o com  lágrimas.

***

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Adalberto Lima, últimos capítulos de "Estrela que o vento soprou."
Imagem: sonhos.com.br