só você sabe o que te faz bem

     Sentado no chão da calçada, encostado no muro de uma casa com uma placa informado sua venda talvez já há um bom par de anos, eu observava o cenário diante de mim. Poderia ser a nossa CBGB falida e despreocupada com a política, ou talvez um medíocre e entediante e deveras alcoolizado La Rotonde. Estávamos cansados, tampouco tínhamos melhor lugar a irmos. A queda de nossa semana era aqui neste jovial bar, com suas mesmas músicas atualizando a definição de repertório. Fora o sono do estabelecimento, e de seus atendentes, no meio do público que me inseri eu acabei sendo o mais velho. Mas independente da faixa etária e do lugar que ficássemos, acredito que nossas buscas se assemelhavam. Queríamos amor, sair da rotina, esquecer de nossas realidades fosse por meio de outra companhia ou por um misto de música, álcool e drogas. Nada aconteceria conosco ali. Nenhuma tempestade em nossos céus. O abuso das drogas e dos bebidas servia como paliativo, e ninguém queria viver o amanhã. Era o hoje, o agora, que mais nos importava.
   Entretanto, por mais que eu usasse a desculpa de querer me encontrar nesse mundo, de viver o máximo para descobrir qual o propósito que fui abençoado com a consciência, igualmente todos os outros ao meu redor insistiam em fazer, meu caminho parecia se esconder a cada vez mais.
     "Ei, cara."
     "Oi?"
     "Me dá outro aí?" ela fez um gesto para me indicar o que queria.
   Levantei-me e tirei do bolso traseiro de minha calça o box de Marlboro, e o estendi. "O isqueiro tá guardado dentro."
    "Valeu," Júlia ficara ali ao meu lado. Conversava com outros de seus amigos. Cada um que a via de longe vinha até ela e a cumprimentava, apesar dela já estar entretida em um papo. Esperava sua namorada, e estava linda, diferente das outras vezes que nos encontramos. Poderia ser a roupa que escolhera, ou só agora que consegui prestar atenção em seu brilho, o que falhei em omitir.
     "Deixa eu te falar," me virei a ela, invadindo a conversa como os outros fizeram. "Você está muito bonita. De verdade." E recebi um abraço como resposta. Ela me devolveu o box e aproveitei para acender um outro naquele instante. Ao nosso redor alguns enrolavam baseados, e as garrafas de vodca e energético enfeitavam os cantos da calçada. Alguém falava próximo a mim, o que não dei a devida importância. As vozes e a música que saía do bar produziam um som ambiente. Podíamos ver a contentação, e sua falta, em cada rosto. Não sentia pena daqueles que consideravam o lugar tedioso. Nossas opções para fugir eram poucas, e precisávamos sentir o acolhimento, a compreensão que só nós desejamos e sonhamos em nossos mais tranquilos sonos.
    "Eu tenho que parar de fumar tanta maconha," um rapaz falou perto de mim.
   "Por quê?" eu perguntei. Quando notei, vi que eram dois conversando.
     "Ah, cara, é que eu tô fumando muito. Muito mesmo. E isso tá errado," sua fala era lenta, enrolada.
     "Mas você tem que fazer o que te deixa confortável," seu amigo respondeu.
     "Sim, eu sei. Mas eu tô fumando muito!"
     "Bom," falei. "Eu não tenho o costume de usar drogas. . ."
     "Você tá certo."
    "Porque aí quando eu uso. . ." e terminei a frase desse jeito. Seu rosto mostrou confusão, ficou sem falar, buscando a compreensão, ou que eu terminasse a frase, encarando algum ponto abstrato na escuridão da própria mente, com o olhar fixo a qualquer lugar e de boca aberta.
    Tremenda sempre foi minha sorte para atrair casais apaixonados. Júlia ainda esperava a namorada. Seu semblante mostrava tristeza, embora o amigo com quem conversava lhe dizia que não precisava do amor para se divertir. Concordei com ele, mas apesar disso tambéms quis alegrá-la, fazer um sorriso nascer em seu rosto. 
    "Ele tá certo, pô," me intrometi. "Só que tipo assim, se sua carência crescer, te deixo sabendo que estou disposto a ajudá-la com isso, por nossa amizade. Você vai ter uma decepção de um tamanho grande, não sou de me gabar assim, mas aí eu posso por uma peruca e afinar minha voz," ambos riram aquela gargalhada bem disposta. "Agora que meu trabalho aqui está feito, vou entrar e pedir uma bebida. Minha garganta está seca e tô começando a ficar com frio."
     "Você tinha me dito que não ia beber hoje," ela falou.
     "Calma, bebê," virei meu rosto antes de atravessar a rua. "Apenas irei me esquentar. Na falta de uma compahia, a bebida pode fazer o mesmo com o coração."
     "Se aqueça por mim," ela pediu.
     Das caixas de som saía aquela música, de uma banda grunge, que é capaz de deixar triste até a melhor acompanhada das almas. Os casais começaram a me deixar desconfortável. A companhia que fui buscar tornara-se ainda mais requisitada. 
    Paguei e sentei ao balcão. Bem próximo a mim estavam duas mulheres. Conversavam alguma coisa que não me prendeu, visto que a beleza de umas já tinha propriamente o feito.
     "Quantas pedras de gelo?"
   "Caubói." Respondi. O barman me deu a bebida junto com uma careta. Corajoso, foi que expressou ao me entregar o copo. Ou talvez me achou louco. Eram tempos de misturas. Aguar os drinques com a falta de sentimentalismo. Ter como se entregar, mas ainda assim carregar o copo feito um troféu, por mais que não goste de seu conteúdo. Estranho como o mesmo vale para as bebidas.
    A mesa de sinuca nunca ficava parada. Acompanhava os passos também daqueles ao lado de fora. Sentia uma beleza em toda aquela movimentação, comparando com uma dança. Uns se amavam com as bocas, outros com as palavras, traçando um limite a jamais ser cruzado. A liquidez fluia, descia na garganta, queimando qualquer necessidade de afeto e, ao mesmo tempo, a anestesiando com idêntica eficência.
     Outros drinques eram feitos e distribuídos. Éramos crianças no colo da morte. Em constante busca pelo mínimo de responsabilidade, para logo a perdermos caso seu peso fosse demais. A combinação do uísque com o cigarro era quase que perfeita, mesmo com uma noite quente, o que não era o caso desta. Aproveitei o bom sinal a me favorecer e resolvi ver o que as outras pessoas estavam aprontando. As redes sociais foram feitas para uma coisa e somente ela: mostrar a todos que você é o ser mais feliz de todos e que aproveita melhor de sua liberdade aos fins de semana. Alguns de meus amigos, aqueles que reclamavam de minha ausência e não aturavam minha presença, se divertiam em outros estabelecimentos como este que me encontrava, o que me levantava questões sobre minha personalidade, minha companhia, minha versão que eles conheciam. Pedi outra dose. Bebi e saí dali, vontando a acompanhar Júlia em sua espera.
     No que Monique chegou eu ainda estava sóbrio, mas sentia meu corpo levitar em meus passos, como se o chão fosse feito de algodão e eu desse pequenos pulos com aterrissagens macias. O culpado poderia ser o aroma de erva sendo queimada bem ao nosso lado. Monique aparentava estar cansada. Eu não sabia distinguir sua embriaguez de sua exaustão, a não ser que estivesse gritando pela rua querendo que carros passassem por cima de seu corpo. Mas seus olhos eram os mesmos, em ambos os casos. Sonolentos, de pálpebras caídas, como se puxassem a vida por correntes e que seu peso fosse descomunal a isso. Em todo o seu ser, eles eram o que prendiam a minha atenção. Para responder minha dúvida, ela tinha acabado de chegar. Se beijaram à minha frente. O primeiro de muitos nessa noite, que sem perceber trouxera não somente aquela mulher, mas o dia que estava para chegar assim quando eu e Júlia descemos da condução que nos trouxe a nosso destino. Acendi um cigarro e dei um passo para trás. Igual ao casal, eu também quis ser esquentado pelo carinho, qualquer que fosse o amor que eu merecesse. Ter o desejo de braços a me segurar, de lábios molhados em prazer matando a minha sede. Contentei-me com os beijos secos que a dona Morte me dava, ao invés da mortalidade de qualquer outra pessoa ali próxima. Eram beijos que me deixavam ofegante a cada dado, que me enganavam com a maestria que eu precisava nessas noites.
     "Boa noite, querido," Monique falou comigo depois de cumprimentar sua amada.
     "E aí, bebê. Como você está?"
     "Um pouco cansada, mas consigo sobreviver," terminou a frase olhando para a mulher ao seu lado.
     "É assim que gostamos," respondi e dei outro beijo, lançando o amor por minhas narinas. "É assim que queremos."
     Notava-se a felicidade em Júlia mesmo quando parava de sorrir. Ela brilhava. Transbordada de amor por aquela mulher de olhares exauridos. Mudara da água pro vinho ao receber os beijos de sua amada, e eu me intrometi no meio delas, abraçando-as sem me importar que continuassem com a demonstração física de amor. Como podiam reclamar do caminho que esta geração tem tomado? Eu me sentia bem ali, com elas, com as outras, e me sentia bem comigo, mesmo sozinho, porque elas contaminavam os arredores com aquilo que nos faltava e estamos tão desesperados a encontrar. Se parássemos para descansar eu creio que essa busca chegaria ao fim. Não é um Santo Graal, não requer todo o nosso esforço e saúde física e mental.
     Elas se afastaram e foram para dentro do bar. Resolvi continuar ali mesmo, fumando devagar, aproveitando que a nicotina estragava meus pulmões e diminuía minha expectativa de vida. Ouvi uma música conhecida iniciando, e logo em seguida a voz de Júlia preenchia os espaços da rua.
     "Ela canta demais, puta merda," comentaram ao meu lado. Eu assenti com a cabeça e traguei meu cigarro mais uma vez. Um cachorro cruzou meu caminho. Ele parou e me olhou.
     "É," eu falei para ele. "Aguente firme, meu amigo. Amanhã pode ser melhor."
     "Pode crer," o rapaz que antes falou comigo me respondeu.
     O cachorro seguiu seu caminho, andando com a certeza de minhas palavras como se eu não precisasse ter dito. Ele simplesmente sabia.
Cleber Junior
Enviado por Cleber Junior em 18/05/2018
Reeditado em 21/05/2018
Código do texto: T6340248
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