O tempo não pára
Cabelo prateado beirando o branco tingido pelo tempo. Já era uma senhorinha, tipo nhá benta sabe?
De óculos e com cardigan azul claro, tinha a pele bem hidratada com unhas pintadas cor nude clarinho, de batom e brinquinho. Tudo indicava que era bem cuidada. Parecia uma bonequinha mesmo.
Naquele espaço pequeno apenas ela e eu. Separadas pelo espaço e tempo. A mesa grande de madeira dava limite ao nosso contato. Acho que tinha 20 anos na época, ela uns 77. Mas um sorriso e o aperto de mão nos aproximava. Que mãos quentes meu Deus!
Eu estava feito louca, correndo e digitando sem parar...já estava na quinta xícara de café antes de almoçar, minha mesa cheia de anotações e lembretes...estava sob droga lícita e um forte ar condicionado. Era o café alternado com a coca-cola. Já alertava Cazuza, o tempo não pára.
A porta do consultório abriu-se sob um rangido que me irritava. Um Senhor magro, moreno e lúcido de passos calmos e voz terna saiu da sala e sentou-se em frente a minha mesa ao lado da idosa.
Cumprimentou-me com um "bom dia" bem educado porém com a voz consternada.
Eu senti sua energia, olhei para seu rosto rapidamente, levantei e peguei a sexta xícara de café. Seu olhar baixo e seu silêncio o entregou no ato.
Mas eu já estava calejada, ao longo dos anos vi muita coisa. Coisas indizíveis.
Eu nunca estava presente, nunca. Vivia o dia como se fosse o passado, presente não existia, trabalhava em cima do futuro o tempo todo. Não podia me dar ao luxo de me preocupar com dramas alheios senão meu trabalho não iria fluir.
Organizei os papéis e iniciei a leitura de um texto que eu acabara de digitar, quando a fala modesta, baixa pra dizer quase muda do Senhor se misturou a minha leitura silenciosa;
- Eu sinto orgulho de você.
- Você me fez um homem muito feliz.
- Sinto orgulho de você ser a mãe dos nossos filhos.
- Sei que você não entende o que lhe digo, mas eu estou aqui agora.
- Porque você é e sempre será tudo para mim.
-Saiba que você sempre foi amada e...
- EU AMO VOCÊ E SEMPRE AMAREI.
Era a declaração do marido que havia acabado de receber o diagnóstico de Alzheimer no consultório enquanto ela aguardava comigo na recepção.
Eu, continuei em silêncio com a cabeça abaixada, sem conseguir levantá-la. Como explicar o que senti? Acho que compaixão pelos dois.
Eu fiquei sem reação. Nem olhei para eles, não consegui, eu fui tomada pela dor dele, só lhe restava agora cuidar dela, porque o fim já tinha chegado. Ela não o reconhecia, tão pouco entenderia ou processaria o que ele estava dizendo.
Tanta gente que mendiga amor por aí, outras que mentem, enganam dizendo que amam e se matam em nome de uma mentira.
Não que ele fosse a perfeição por estar se declarando para ela, não os conhecia fora daquele ambiente coberto somente por perdas e esperanças. Sabe-se lá qual era o tipo de marido que ele foi para ela.
Mas os homens em sua maioria custam a expor seus sentimentos de uma forma tão aberta assim.
Talvez nesses momentos que a gente descobre o que é AMOR.
Nós mulheres desejamos toda a vida sermos amadas e desejadas e cortejadas e únicas e no momento que ele se abriu para ela, ela já não era "Ela" em sua totalidade.
Se eu tivesse o poder, daria a eles pelo menos mais 10, 20 anos para aproveitarem.
Acredito na vida eterna e desejo que se reencontrem...e sei que era necessário que eu presenciasse esse momento.
Eu sempre lembro disso, alegro-me de saber que eu presenciei mesmo que tentando ficar invisível ali. Saber que mesmo raro ainda existe amor verdadeiro.
Ele ficou ali por um momento e me pediu para lhe chamar um táxi.
Eu trêmula, o atendi prontamente. Eles se foram e nunca mais os vi.
E a partir desse dia eu mudei.
A vida é curta. Bons momentos são como sustos de tão rápido que passam, imagina se encontrar em alguém e perdê-la assim.
E perdê-la assim.