À Beira mar

"As pessoas sentiam que havia algo estranho naquele lado da ilha."

A casa ficava próxima à vila de pescadores. Era uma construção antiga, dos tempos em que se caçava baleia, e pertencera a avó de Inês. Ela e Cláudio moravam ali há pouco tempo. Não se tinha luxo, mas era confortável. O casebre tinha uma varanda de frente para o mar, já nos fundos eles adaptaram uma peça transformando-a em seu escritório. Os quartos ficavam na frente. Eram dois: o de casal e um menor ( que ele reservara para o filho que esperava ter em breve). Os dois viviam felizes, sem grandes sonhos.

Eles se amavam, se completavam. Nas noites de verão, quando a brisa quente do mar entrava pela varanda casa adentro, o jovem casal colocava uma mesa na entrada da casa e jantava ali. Ele, para ir à cidade, pegava uma trilha que levava em média meia hora à vila de pescadores. De lá ia numa embarcação até o centro comercial em vinte minutos.

Naquela noite acordou mais cedo. Ficou na cama meio inerte meio alisando o rosto de sua amada. Ela dormia profundamente, com os cabelos negros contornando a pele morena do rosto. Poderia passar horas ali, somente a olhando. Lembranças surgiam a mil, recordou do dia que a conhecera. Foi num dia de verão logo após ser abandonado por Fernanda. Inês surgiu linda do mar. Com o vestido florido de alças finas, que lhe caía sobre o quadril realçando-o. Olhos negros e um sol no sorriso, com um perfume adocicado (tinha quase certeza de que era de maçã). Deixou as lembranças de lado e levantou-se preguiçosamente preparando-se para mais um dia.

Cláudio já tinha se decidido: iria pedi-la em casamento. Não seria algo grandioso, seria modesto e somente para os dois. Por isso andara olhando nas vitrines das lojas um presente, mas não se decidiu. Na noite seguinte, a lua estava cheia e o seu reflexo cortava o mar. Ele acordou de madrugada febril. Devido ao calor que sentia, decidiu fazer uma caminhada na praia e aproveitar a brisa para se refrescar. Andou à beira-mar sem destino, molhando apenas as pontas dos pés. Próximo à velha casa, antes de entrar, Cláudio escultou uma risada. Confuso, volteou a casebre para saber o que estava acontecendo, mas não encontrou ninguém. Contudo, ele viu pegadas e ouviu uma voz distante em alto mar.

Durante a semana pouco dormia. Uma mistura de odores o despertava, sempre sentia o mesmo cheiro doce amadeirado. Era o perfume de Fernanda. Então, desordenado, levantava-se de súbito e ia procurá-la. Acordava, sem querer, Inês, que se assustava. Não queria perturbá-la, por isso não lhe contava o que ocorria. Procurava algum sinal, porém sem resultados. De manhã, antes das oitos, Inês chegou em casa. Tinha saído cedo e ido na casa do seu irmão. Trouxeram as compras na carroça de mula do cunhado de Cláudio, como das outras vezes. Ele e o cunhado não eram próximo, mal se falavam. Trouxeram legumes e peixes, também havia uma garrafa de vinho. Cláudio a observou guardar os produtos, enquanto seu cunhado partia em silêncio.

Na madrugada seguinte, o perfume de Fernanda retornou a acordá-lo. Inês não estava tinha avisado que dormiria na vila de pescadores, na casa do irmão. Procurou pela casa inteira, revirou tudo que tinha pela frente, precisava saber donde vinha o perfume. Na porta do quarto, incrédula, Inês observava em silêncio, achou que ele estava revirando suas coisas. Nesta noite os dois brigaram, e foi uma briga tensa. Nunca haviam discutido daquele jeito. Cláudio pediu desculpas e, em forma de gratidão pelo perdão, fez um jantar romântico. Beberam e comeram na varanda, sob um grande luar. Mais tarde, fizeram amor lentamente, como o quebrar das ondas.

Já não conseguia dormir. Ao tardar, enquanto o céu estava estrelado acompanhado de uma lua plena, voltava a sentir o perfume de Fernanda. Saiu pela praia e o vento soprou forte os grãos de areias no rosto, fechou os olhos para não entrar nenhum. Vislumbrou o mar iluminado pela lua e, lá do meio, veio ela. Com um vestido branco e os cabelos loiros soltos até os seios. Os olhos de Cládio brilhavam ao se aproximar. Fernanda estava andando nas areias em sua direção. Pegou-o pelas mãos e sorriu, ele se lembrou de como era lindo aquele sorriso e, juntos, de mãos dadas, foram entrando no mar. Quando as ondas estavam a bater-lhe nos joelhos, Cláudio parou. Séria, ela o fitou e o viu ir em direção à praia. Depois ele correu e, por fim, quando estava num barranco de areia, olhou para trás, e Fernanda continuou a andar até sumir no meio do mar. Um aperto inexplicável lhe veio no coração. Sentou-se e chorou, depois decidiu partir sem rumo, foi entrando na mata sem saber o que queria até que avistou uma trilha. Adentrou e, no final dela, encontrou uma caverna, na entrada passava um pequeno córrego. Movido mais pela curiosidade do que qualquer outra coisa, foi seguindo sobre a limosidade das pedras aonde pudesse. No fundo da caverna, havia um santuário com altar e com uma caixinha no centro. Abriu-a e uma luz forte emanou o cegando.

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Cláudio trabalhava há dois anos no escritório de Sérgio, pai de Fernanda. Desvalorizado, o patrão mal sabia seu nome. Até que um dia Fernanda passara no escritório do pai e, por instantes, os dois se olharam. Ele ficou impressionado com ela, que, de alguma forma à qual Cláudio não sabia, também se encantou. Marcaram de sair e, secretamente, foram se envolvendo até que Sérgio descobriu. Como o esperado, ele demitiu o funcionário. Depois de algum tempo, Cláudio conseguiu um serviço temporário em um escritório rival ao do sogro, mas o tempo foi indo e ele crescendo na empresa. Não tardou muito para ser efetivado, depois foi ganhando prestígio e ascendendo de cargo. O sogro não o despreza mais, tolerava-o sem nunca estar feliz com o genro. Para Cláudio, isto bastava, o que importava era o amor de Fernanda.

No final do ano, Cláudio e Fernanda decidiram passar as férias em um cruzeiro. Era uma embarcação grande, que cortaria a costa sul do país. Famílias inteiras estavam à bordo. Partiram antes do natal e iriam até o final de janeiro do ano seguinte. O jovem casal estava feliz. Seria uma viagem especial e ele estava decidido a torná-la inesquecível.

Antes da festa pré-reveillon, Cláudio acordou mais tarde, pois tivera uma dor de cabeça na noite que passou. Pediu o café da manhã no quarto e um remédio para aliviar a dor. Mais tarde foi para a piscina, depois andou pelo convés. Próximo à cabine de comando, viu Fernanda conversando animadamente com o capitão, riam felizes. Cláudio ficou intrigado e retornou ao quarto. Assim que ela também retornou, pensou em perguntá-la, mas recuou da ideia. À noite, na festa, o casal dançou empolgado. Bebiam e conversavam com uma banda de músicos tocando aos fundos. O capitão passou e cumprimentou-os. Cláudio tomara coragem e perguntou-lhe se o conhecia. Ela respondeu, sem imaginar que ele desconfiara de algo, que ela não conhecia o capitão, mas este conhecia o seu pai, por isso também a conhecia. Ela revelou que o homem contou história a respeito dos tempos de juventude do seu pai. Nesse instante, Cláudio se sentiu mal por desconfiar de algo e, mais do que nunca, tinha certeza de que Fernanda era a mulher de sua vida.

No dia da virada, o cruzeiro tinha se afastado ainda mais da costa. O dia tinha sido quente, com uma brisa que lambia o corpo. Crianças brincavam na piscina, enquanto mulheres pegavam bronzeado. Quando a noite chegou, todos estavam preparados para o novo ano que chegaria. Porém, ao faltar pouco para o momento, o capitão mandou todos entrarem no convés, pois havia uma tempestade se aproximando.

Na verdade, era um ciclone extratropical que se formara no mar, o chefe da embarcação não foi técnico na explicação porque não queria assustar a tribulação. Não tardou e a chuva começou. Em seguida, o vento ganhou força afetando a estabilidade do cruzeiro. As ondas batiam violentamente na proa fazendo um estalo seco, e a água aos poucos ia entrando no navio. Fernanda olhava para Cláudio assustada, ele, entretanto, tentava passar serenidade. O ciclone se aproximou e, quando ainda tinham esperanças, os tribulantes perceberam que estavam no olho da tempestade. O navio, embora forte, não resistiu e virou. Entre o barulho da tempestade e gritos desesperados, Cláudio imergiu e, assim que retornou à superfície, Fernanda não estava mais ali. Pedaços do navio serviam como única tentativa de sobrevivência, pessoas tentavam a todo custo se manter neles. Cláudio somente queria saber de Fernanda, procurou por ela, mas não a encontrou. As ondas arrastaram o restos da embarcação. Quando ele percebeu estava só. O tempo passou e nenhum sinal dela ou de alguém, decidiu parar de lutar e deixou-se engolir pelas águas. Ao longe, o vento forte trazia um vulto na escuridão.

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Quando soube da tempestade, Inês e o irmão decidiram retornar imediatamente para costa. A pesca não tinha sido boa, mas isso não importava, visto que sabiam do risco que corriam em permanecer em alto mar. Se tivessem retornado pouco antes, pegariam o ciclone. As águas ainda estavam revoltas e a chuva caía forte. Cada vez que se aproximavam da costa destroços iam surgindo. O irmão de Inês retirava alguns corpos da água e, em seguida, devolvia-os, pois estavam mortos. Mas havia um ao longe que se percebia que respirava. Inês apontou e o irmão conduziu-os até lá. Quando puxaram ele para dentro, o corpo caiu mole na embarcação e, por algum motivo, sorriu para ela.

Nesse momento um sentimento surgiu no coração da jovem, desejou-o para si. Contudo, a situação de Cláudio piorava e, assim que chegarem na praia, ela percebeu que o final do amado estava próximo. Desembarcaram não na vila de pescadores, mas sim na antiga casa que pertencera a sua família. Entraram e estenderam Cláudio na cama. O batimento cardíaco estava fraco e a morte próxima. Inês olhou para o irmão como se pedisse permissão. Após um diálogo de olhares, a pulsação indicava que Cláudio partiu. Inês chorou, suas mãos não continham as lágrimas que caiam sobre o morto. Levantou os olhos na direção do irmão, que deste vez não teve coragem de negar-lhe o pedido. Com a avó aprendera os segredos da magia, chegou o momento de usá-los.

Desde cedo testemunharam os poderes da avó, evocavam imagens dela fazendo seus rituais e coisas extraordinárias. Através da observação cotidiana, aprenderam seus segredos, desde os pequenos aos grandes. Seguiriam passo a passo levando o afogado para uma caverna onde era realizado os cerimoniais. Deitaram Cláudio em meio as pedras e, depois, Inês fez um pequeno corte no pulso dele. Colheu o sangue frio numa taça e misturou com especiarias que trouxeram. Jogou folhas de macieira ao redor do jovem, enquanto seu irmão assistiu tudo em silêncio. Em seguida, com o mesmo punhal que o cortara, fez um corte no próprio pulso. Também usou a mesma taça e misturou o seu sangue com o outro. Fez uma prece em um dialeto desconhecido em frente ao fogo em cima do altar. E, antes de ela beber da taça, aproximou-se uma vez mais, olhou-o com ternura e pegou em sua mão esquerda. Com cuidado, retirou a mão direita dele do bolso. Percebeu que estava fechada, moveu os dedos e uma caixinha caiu. Pegou para abrir. E lá dentro tinha um anel. Leu o que estava escrito na parte interna e, do fundo do seu coração, desejou que aquele nome fosse o seu.

# Tema: Fantasmas/Assombrações.