O Tratador de animais

Houve um tempo em que seu expediente terminava cedo e ao chegar em casa encontrava-a deserta; os filhos ainda no colégio e a mulher no trabalho, ela retornando à noite. De sorte que um dia ou outro ficava perambulando, fazendo hora. Sentia-se atraído pela orla da cidade e seguia no rumo do Ver-o-Peso. Ali ficava na contemplação das ondas da Baía de Guajará, a sentir o vento chegando de longe, vindo do mar contra o seu corpo, a tremular com força sua roupa e refrescar-lhe nas tardes calorentas de Belém. Logo decidia abrigar-se em uma das vendas de comidas. Sentava-se e pedia uma cerveja bem gelada para tomá-la sem pressa, ainda que abordado a todo instante pelos ambulantes e pedintes. Naquela hora ali havia um pouco mais de sossego, entretanto sem deixar de lado as precauções contra a malandragem, contra os pilantras de toda espécie que por lá rondavam, assim era o conselho de muitos diziam. Mas, a bem da verdade, naquela feira ele nunca fora roubado. A outros lugares poderia ir, mas a feira ganhava sua preferência, gostava de observar pessoas de vida simples e, além disso, um lazer com pouca despesa.

Em uma dessas tardes avistou uma jovem barraqueira, morena típica, muito bonita e com um especial charme em seu vestido decotado de mangas bufantes. Mas, como era de se esperar, com os lugares de sua barraca todos tomados, obviamente por homens, parte do seu batalhão de admiradores, sem dúvida. Sentou-se ele então no banco da venda mais próxima a funcionar no momento e foi recebido com um largo sorriso da atendente, mulher de seus quarenta anos, a lhe servir com cuidado, copo limpo, garrafa bem escolhida no freezer. Afinal, era o único freguês àquela hora e a mulher não queria perdê-lo, pois que a maioria os homens que chegavam espremia-se na venda da linda morena, sua quase vizinha.

Naquela ocasião ele trocou pouca conversa com a mulher que o servia porque a viu ocupando-se a catar dinheiro para pagar ao bicheiro.

Dois dias depois se repetiram os passos dele, indo parar na mesma barraca, e naturalmente, estava lotada a da morena de cabelos negros sedosos e vestido decotado. Não que ele tivesse a pretensão de aproximar-se da jovem, furar a fila de seus pretendentes, de chamar para si sua atenção e seduzi-la. Ele ficava admirado com tanto assédio, a lembrar-lhe Penélope a tecer seu infindável tapete. Ao recobrar-se de sua comparação percebeu que a mulher, a mesma que o atendera há dois dias ali mesmo, dava sinais de nervosismo ao vê-lo e ele perguntou: – Algum problema? Não, respondeu ela recompondo-se, pelo contrário, estou alegre em rever você. Obrigado, disse ele, se for para fazer você feliz eu virei sempre aqui beber cerveja. A mulher falou: – Eu estava esperando a sua volta para lhe dizer que você me deu sorte. Como assim? Bem, respondeu ela, há dois dias você aqui esteve e ganhei no jogo. Jogou em qual bicho? No cavalo, disse ela a sorrir, acertei em cheio. Quer dizer que assim eu lhe pareço? Sim, afirmou a mulher, um cavalo, um garanhão. Forte, bonito, vistoso. Se você jogar novamente hoje vai perder, estou longe de ser um garanhão; quando muito eu poderia ser um cão ou gato, sei lá. Ótimo palpite, disse ela, vou jogar no gato, você é um gato. Essa mulher é biruta (pensou ele, rindo consigo mesmo). Quer dizer que hoje eu sou um gato? Tomara que você não faça outras comparações pouco recomendáveis, observou ele. Claro que não, disse ela a lançar-lhe um olhar malicioso, você tem uma bela aparência, de homem de verdade, muito charmoso e elegante. Você deve ser militar – disse ela, especulando – está de folga. Não, respondeu ele, não sou militar. E limitou-se nessa resposta, preferia que a mulher não soubesse qual sua ocupação nem tampouco seu nome.

Passaram-se mais alguns dias até que ele retornou à feira e abancou-se novamente no mesmo lugar e a mulher ao atendê-lo mostrou-se mais alegre, ganhara outra vez no jogo, deu gato no dia em que ele ali estivera. Desta vez ela havia arriscado mais e assim o prêmio fora maior. Você é um homem que traz sorte - disse ela acariciando os cabelos de uma menina que estava junto a si. Minha filha, este rapaz deu sorte à sua mãe. Esta é minha filha – continuou ela – hoje a fazer-me companhia.

Ele terminou de tomar a cerveja, pagou e despediu-se.

Dias depois ele ficou sabendo por ela mesma, pela mulher que o servia com tanta amabilidade, que era deixada do marido. A menina era sua única filha e a barraca pertencia a uma amiga que a ela pagava uma comissão sobre o apurado na venda. E ele, por tratá-la bem e à filha, a quem dava pequenos presentes e lhe comprava bombons; e por se tornar assíduo, fez-se de tal modo benquisto e admirado pela mulher atendente que passou a insinuar-se, a dizer-lhe que apesar de não ser tão jovem ainda estava em plena forma, a deixar claro nas entrelinhas o quanto era experiente nas artes do amor. Que vivia só por opção, e desde a separação, depois do marido a poucos ela havia permitido aproximação. Enfim, deitou as cartas na mesa e ele se fez de desentendido. Sem dar-se por vencida, ela insistiu em saber da ocupação dele e por fim ouviu em resposta: Sou funcionário... Funcionário público? Perguntou ela com os olhos arregalados – porque isso queria dizer segurança, salário certo no dia exato, fora outras vantagens. Sou funcionário... do museu. Do museu? Perguntou ela. Trabalha lá no museu, aquele da Avenida Magalhães Barata? Onde tem onças e jacarés? Isso mesmo, respondeu ele com a cara mais cínica, admirado ele próprio do tamanho de sua mentira. E o que você faz lá no museu? É administrador? Não. Segurança? Não. Porteiro? Também não. E o que você faz lá então? Já sei, é... Veterinário! Também não. Então diga logo. Bem, respondeu ele sem saber se existia mesmo o cargo que estava afirmando: – Sou tratador de animais. Como assim? Perguntou ela. E ele respondeu na maior caradura: – Eu cuido dos animais, entende? Dou-lhes comida, sou encarregado da limpeza das jaulas, é por aí... Você cuida dos bichos? Perguntava ela agora num incrédulo sorriso. Ele respondeu: – Isso mesmo, dou-lhes banho... Escova os dentes também? Perguntou ela. Só das macacas, os macacos deixo para o meu auxiliar, ele respondeu fazendo um bico nos lábios para conter um riso descarado. Cuida dos veados também? Não, os veados têm outro tratador, não é minha área. Você está me gozando, é um tremendo brincalhão, disse ela, não tem aparência de quem cuida disso. É verdade, disse ele despedindo-se. Quando vai voltar aqui? Perguntou ela. Outro dia, quando estiver de folga. E ele resolveu não voltar mais ali.

Outros dias se foram até que num belo domingo a esposa o convidou a visitar o Museu Goeldi, com dois sobrinhos, e lá chegando os meninos com tudo se admiravam, até que um deles insistiu em ver os macacos. No caminho, quase próximo à jaula dos símios, ele avistou a mulher da barraca e a filha sentadas em um banco a observar os passantes. Vamos pelo outro lado, disse ele, acabei de ver um tamanduá ali adiante. Eles são muito perigosos com seu abraço e suas garras. Tamanduá? Retrucou a esposa. Não existe nenhum tamanduá neste museu, que eu saiba. Era um tamanduá sim, repetiu ele, deve estar caçando formigas por ali, deve ter algum formigueiro lá, é melhor procurarmos outro caminho. Deixa de ser bobo, não há nenhum tamanduá por aqui, os bichos que andam soltos são inofensivos, são as cutias. Pois é, então foi uma cutia que eu vi, uma grandona. Tens medo de uma cutia? Não conhecia esse teu lado medroso, dizia a esposa, na ocasião puxada pelos sobrinhos: – Vamos logo ver os macacos! Da cutia não, mas do jacaré que vem atrás dela para devorá-la, justificava ele. Para já com essa besteira, homem, os jacarés estão presos nos lagos. Pode ser também que uma onça venha atrás da cutia, objetou ele, eu vi alguma coisa ali, mexendo-se no meio das árvores.

Deu a louca no meu marido, pensou ela.

Até que ele olhou novamente para o caminho e não viu mais a mulher, a barraqueira, e sua filha, que já o chamava de padrinho; e a mãe a dizer, padrinho por enquanto, futuro pai, sim. Finalmente aliviado, ele seguiu no rumo pretendido pelos sobrinhos, recobrando-se da palidez que o acometera e começava a preocupar sua esposa que já o aconselhava a consultar um médico, e a este insistir no pedido de uns dias de licença – com certeza o marido andava estressado de tanto trabalhar.

Dias depois ele ficaria lívido novamente, em plena rua, quando da janela de um ônibus da linha via Ver-o-Peso acenou-lhe uma menina no colo de uma mulher que dirigiu também a ele um aceno. Conheces aquela mulher? Perguntou-lhe a esposa ao seu lado. Que mulher? Aquela que do ônibus acenou para ti. Não, não conheço não, está me confundindo com outra pessoa, respondeu ele subitamente pálido.

A esposa ficou intrigada. Parecia-lhe já ter visto a mulher e a cunhantã, dias atrás. Onde? Tentava lembrar.

Sim, ela recordou, vira a dita mulher e a guria no Museu Goeldi, a perguntar pelo tratador das macacas.