Cinco mil giros

Tinha organizado tudo na noite anterior. O reparador de pneus – que não pode faltar nunca, luvas, jaqueta para pilotagem, as botas. Apenas duas peças de roupa. O básico. Não estava tão motivado para viajar, como em outros tempos, porém, decidido. Cancelaria, apenas em caso de forte chuva. A última viagem com chuva saí na escuridão da madrugada, quarenta quilômetros após parei no acostamento para vestir a capa de chuva. Mas a questão, naquele momento, não era a capa de chuva. Simplesmente, impossível enxergar algo. Chuva acompanhada com fortes ventos. Tive medo. Em sentido contrário seria mais fácil voltar pra casa porque muitos caminhões começavam a chegar na cidade. Senti as gotas esfriarem a capa, sem capacete esfriei a cabeça. Por alguns minutos escuridão total. Sozinho no meio da BR. Escutava a chuva caindo nas árvores, o ruido do vento. Não demorei para entender que se por acaso fizesse o caminho de volta teria sério risco de nunca mais seguir em frente. Seguir em frente. As chaves enroladas num cordão, prática tão comum entre motociclistas e motoqueiros ganhou utilidade. Se aquela chave caísse no chão teria que esperar que algum carro iluminasse parte da estrada para poder encontrá-la. Não foi difícil subir na moto, encontrar a ignição é gesto automático, problema mesmo seria não errar nas curvas, não cair em grandes valas. Chegar inteiro é sempre o maior desafio de qualquer motociclista, naquelas condições o desafio é manter a loucura. Enquanto preparava o que sempre levo isso se mantinha vivo nas minhas lembranças. Então, será que repetiria uma viagem às 3h30 da madrugada em plena chuva? Podem até perguntar se compensou o risco. Claro!

Enquanto separava equipamentos que espero nunca usar pensei em todas essas coisas com uma certeza: não repetiria a viagem nas mesmas condições. Moto não é para viagens noturnas, portanto, dormiria e sairia sobre os primeiros raios de sol.

Acordei sete horas. Olhei para o teto pensando: “eita! Acho que estou esquecendo de algo” Dei um salto. Caminhei de um lado pra outro tentando me encontrar até que abria janela. “Praia”, pensei alto. Meu filho já devia está acordado, desde as cinco horas. Já a esposa preparava algo na cozinha, muito cedo – por tratar-se de domingo. Ainda na janela olhei para moto: “porra!” Caiu a ficha. Esqueci por completo da viagem. Pode parecer que não quisesse viajar. Esqueci porque dormi muito. O esquecimento foi um bom aviso de que poderia viajar. Pelo menos fisicamente encontrava-me bem. Na sala tudo acontecia como um filme que deixamos em pausa e depois de uma semana apertamos play. Brinquedos espalhados na sala, o cheiro de café, o canto dos pássaros, a tevê ligada. Pela sequência verificaria a programação para ver se tem alguma corrida de automóvel sendo transmitida …

Passou algum tempo. Uma longa viagem. Diria que nem tão longa. Três horas e meia e a única coisa que se escuta são os cilindros do motor cadenciados. Cinco mil giros, cinco mil, seis, cinco, seis, às vezes sete, daí reduzo para zona de conforto. Não contemplo a natureza. Eu sou a natureza. Sou a máquina que se deixa conduzir, se existe peso, nada, como não pensar em nada, a não ser cuidar do que realmente importa. Então, você chega. Devagar pouca coisa de fato muda, a não ser o tempo com suas eternas ingratidões. Dois toques pra chamar atenção. Não existe pessoas na rua. Costumava caminhar nestas ruas desertas, tantas vezes desertas, outras tantas quando a multidão comemorava algo, ou rezava por algo ou alguém, pequenas coisas que deixamos pra trás, mas que não se perdem. Daí você abre o portão e se dá conta que já não é o mesmo. A força não é àquela que nosso corpo suporta. Apesar tudo, ficamos um pouco mais forte. O abraço, o cheiro da comida, as lembranças.

Caminho de um canto pra outro. Abro a terceira porta. A cama forrada, as sombras que apreciava. Sinto falta do quadro poderia chamá-lo “tesão pela vida”. Esse quadro tinha uma frase lida por mim um milhão de vezes ou tantas outras que meu corpo jovem convalescia. Àqueles olhos grandes e castanhos me encaravam e logo embaixo a frase: “Senhor, que queres que eu faça?” Nunca soube o que fazer. Na medida que ficamos velhos, se já não sabemos … esqueça! Então, sento, sem meu quadro favorito descalço de minhas botas, tiro as minhas luvas desbotadas da estrada. Reclino meu corpo sobre o colchão. A respiração é a mais profunda. Bati minha meta do dia. Não perdi a hora. Ganhei um tempo esquecido de domingos tranquilos e quentes. Mas uma viagem não é apenas isso. Então, claro! Cabe espaço para o novo.

Dizem que recordar é viver. Não acho. Recordar é alguma coisa que nos diz o quanto caminhamos. Alguns mais, outros menos. Alguns pela direita, outros pela esquerda, alguns por caminhos alternativos, às vezes um pouco de tudo. É a maturidade do encontro que mostra todas essas novidades. Qual seria a maior delas? O carro novo? A casa reformada? A nova guitarra? Os negócios a mil? Qual seria a novidade? Alguém te abraça com tanto afeto, feto, ninguém mais poderia te dá mais presença de onde você está, do que você é, do que somos. Elas são fantásticas. Estou pensando no que há de novo. Sim. Um pouco mais solitários, porém, mais seguros de si, seguros de que fazemos nossos caminhos. No meu caso um nó na garganta que me diz que poderia ter feito um pouco mais, mas aí nada melhor que sentar, conversar e olhar bem no fundo dos olhos de cada um. Ficar em silêncio. O novo é saber que sempre voltamos de onde viemos. Voltamos, mesmo que sejam em nossos sonhos. Recordar não é viver. Recordar é sermos o que de fato somos.

O dia seguinte tudo foi um pouco mais lento, até a hora de ligar o motor. Então, acelerei o máximo que pude. Queria que a estrada me trouxesse de volta ao exílio. Senti medo ter ter medo e não ter forças para entender que pouco podemos fazer, além de vivemos nossos próprios caminhos. Ao contrário do domingo de sol, a segunda-feira continuava sendo o que sempre foi. Inclinava-me nas curvas, subia marchas pedindo mais do que a pequena máquina poderia dar. Sempre caminhei assim. Me forçando um pouco. O motor indicava que não poderia ir mais, mas àquela maldita vocação de forçar e forçar, daí vem a chuva e tudo fica um pouco mais complicado. Água fria me acalma, o atrito com a água limpa minha turva visão. Poderia seguir em frente por horas, enfim, conseguiria sentir ‘o novo’; olhar pelo retrovisor com vontade de seguir em frente, sabendo que não é apenas um caminho, mas tudo que se segue. O que precisava naquele momento encontrava-se posto. Cinco mil giros me trazia de volta, até o momento que você desliga o motor, tira as luvas, abre a jaqueta e o capacete e, entende que há sempre algo maior do que podemos entender, daí simplesmente vivemos, sentimos e nos damos ao entendimento ..., confesso que não sei terminar. Cinco mil giros. É isso!

Jorge Alexandro Barbosa
Enviado por Jorge Alexandro Barbosa em 28/09/2018
Reeditado em 28/09/2018
Código do texto: T6461679
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