SÃO FRANCISCO MUDANÇA

Merda, como passo a limpo essa história se falta um pedaço no canto superior esquerdo da folha? O rascunho contava a história de uma mudança e a narrativa tinha foco numa imagem de São Francisco que ficaria para trás. Começar com ‘merda’ não foi bom negócio, eu devia ter escrito ‘graças a Deus’ para não espantar o leitor logo de cara. Ou dizer que trata-se de uma história de amor mas aí o contrato de verossimilhança faria do engodo desrespeito ao leitor.

Mas ali está, São Francisco, graças a Deus! Não o Santo, que por mais vidas que tenha a santidade ainda não é no meu quintal que se manifesta tamanha serenidade. Trata-se de uma mudança de casa, de cidade, e não podia ser mais caótico o movimento.

Eu já tinha embalado os livros que restaram, já tinha doado o que não servia, já tinha perdido muito. A imagem de São Francisco em terracota estava no jardim das especiarias, na lateral da parede mais comprida da casa que ficaria apenas o suficiente na memória para compreender minha necessidade de ter vindo morar tão longe de mim. Parece história curta de alguém que não foi e voltou, ou a eternidade estampada na cara de barro do santo no jardim. Recorto o momento, mudanças numa história sem fim.

É crueldade dizer para as crianças que as coisas não tem fim, elas sabem da morte desde pequeninhas. Eu descobri que estava vivo aos 6 anos e o assombro de saber me acordou do primeiro sonho. Se não acorda, a pessoa sonha a vida toda. Eu sinto inveja de quem nunca acorda. E porque sou uma pessoa má, sempre que posso desperto quem sonha.

De volta ao movimento caótico do relato, a mudança se resumia agora a um breve inventário. Isso é meu, isto não me pertence. Aquilo fica, aquele vai comigo. São Francisco não podia ficar para trás. Se a imagem de barro do homem santo que sustenta na alma a verdade e o caminho ficar eu não prossigo. A quirela do desapego é sempre batalha épica. Não tivemos filhos, a separação é mais fácil. Mentira. Merda. Eu estava prestes a sair sem o santo.

É triste precisar o imponderável. Mais nada ali me acolhia. A cidade progressista com suas ruas de tabuleiro me encarcerara. Algemas invisíveis pendiam derretidas de meus punhos. Era hora de mudar as condições para ver mudar o sujeito, segundo Marx não há outro modo menos doloroso e mais exato. Haja coragem para mudar o destino.

Aos poucos a casa ficava vazia. Não a casa que ficava mas a casa que ia comigo. Cada coisa objeto-utensílio imóveis parecem brinquedos desmontáveis. No baú coberto da carroceria uma casa ambulante me levaria dali com São Francisco no colo. Talvez na caixa enorme, porque não pensei nisso antes, quanta coisa cabe nas caixas de papelão. Eu deixaria as portas, as janelas e o jardim. Deixaria a esperança que me trouxera tão longe. Só o medo nos leva adiante.

Entrei pela última vez no jardim, eis o clímax discreto dessa história. Olhei com olhos de saudade. Vou deixar São Francisco como testemunha da minha passagem. Rogai por nós santa Mãe de Deus. Não devo nada que não possa pagar. Pensei ter ouvido alguém dizer não vá. Pode ter sido outro devaneio mas pareceu-me que o barro consentiu. Paciência, o Santo fica. Eu vou.

E fui.

Vim para onde não estou.

Esse lugar sacralizado onde não é necessário oxigênio para respirar.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 13/10/2018
Reeditado em 20/11/2019
Código do texto: T6474873
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