Filho da professora

Eu sempre fui muito tímido, desde pequeno. Mas timidez não pode ser confundida com “vontade de aparecer”. São coisas completamente diferentes.

A timidez é a vontade de ficar quieto, no seu canto, sem ser incomodado e, principalmente, sem ser objeto central de constrangimentos e humilhações (o que, para alguém muito tímido, acontece em quase todas as situações de exposição pública). Mas é claro que, como foco de admiração e elogios, até os mais tímidos não apresentam objeções. É uma vontade de aparecer bem específica.

Quando eu fazia a quarta série, mais ou menos uns 10 anos de idade, eu queria aparecer só para a Janaína, a menina que eu gostava. Para todo o resto, eu era o tímido habitual. Paradoxalmente, minha timidez quadruplicava quando eu virava o foco de atenção da garota.

Foi assim quando a turma começou uma guerra de balões de água no jardim do colégio depois da aula, e eu consegui me desviar de vários (na época, me senti membro fundador do Cirque Du Soleil), torcendo para que a menina visse minhas habilidades. E o pior é que viu. Eu é que não a vi se aproximando de mim num ponto cego e perguntando “nossa, não te molharam?”. O desvio à pergunta foi ainda mais acrobático “Óbvio que não”. Sai correndo. Sofri muito para dormir à noite.

Tímidos sofrem. De outra feita, a professora dividiu a classe com base na ordem alfabética para fazer um trabalho em grupo. Dei pulos de alegria interior, porque meu nome também era com “J”. E o grupo, de quatro membros cada, só tinha eu de garoto: Ivana, Janaína, Jandira, Jorge. Superada a questão do sorteio, juntadas as mesinhas para o trabalho, agora vinha o verdadeiro desafio: conseguir me portar com total indiferença sentando de frente para a garota dos meus sonhos.

Acredito que foi uma das melhores atuações da minha vida. Me portei como um gentleman conversando apenas com a Ivana e a Jandira e ignorando completamente a Janaína. Não sei por que nessa idade a gente tem tanta dificuldade com garotas, e elas apresentam tamanha desenvoltura. Aliás, guardadas as proporções, parece que até hoje é um pouco assim. Talvez seja uma lei natural ainda não comprovada cientificamente, uma verdade universal que deveria estar naquele vídeo do “Filtro Solar” junto com “os preços sempre vão subir e os políticos sempre serão mulherengos”. As garotas sempre serão mais maduras do que os garotos.

O fato é que eu parecia estar me saindo bem, até que a Ivana disse, numa altura bastante razoável: “O Jorge gosta da Janaína!”. Poucas situações na vida me deixaram tão desconcertados quanto essa revelação de uma verdade tão cabal, de forma tão despudorada. Apesar de estar no controle da situação o tempo todo, tive que abandonar o plano e abraçar uma estratégia de emergência (amplamente utilizada por governos do mundo inteiro): negar tudo. “Nunca gostei dela!”. A delatora ainda insistiu de forma impiedosa: “Está apaixonado sim! Você ri e concorda com tudo o que ela fala e não para de olhar pra ela!”. Como uma caçadora apunhalando um filhote de foca. Neguei novamente, e a agressora ainda lançou um “Você não consegue fingir!”.

Quando neguei meus sentimentos pela terceira vez, vi uma expressão monalisicamente triste no rosto da Janaína. Deus, espectador de todo o ocorrido (e já experiente com esse negócio de três negações consecutivas), mandou tocar a campainha do recreio de forma antecipada e nos livrou daquela situação constrangedora. Sofri muito para dormir à noite.

Mas eis que o destino quis me recompensar.

Meu pai, na época, trabalhava como representante comercial de uma empresa de remédios. E estocava em casa quilos de amostras grátis, panfletos de propaganda e literatura médica (tinha um VHS institucional da Turma da Mônica contra doenças alérgicas que era sensacional! Assisti umas 476 vezes!). A gente se divertia com aquilo. Tinha um quadro que explicava a circulação sanguínea, com representação das veias, artérias e até um sangue que corria de verdade (era tipo um papel vermelho brilhante que mexia quando você girava as pontas). E por causa desse quadro, no meio de uma brincadeira qualquer, meu pai explicou pra gente como era esse negócio de sangue venoso, sangue arterial, veias, coração, ventrículos, etc.

Não é que calhou de a professora dar uma aula de ciências sobre sistema circulatório? E acho que ela perguntou meio que de onda, capciosamente, só pra deixar a classe calada sem resposta (afinal, eram crianças de 10 anos de idade): Alguém sabe qual a diferença entre veia e artéria?

Eu ri por dentro. Porque eu era tímido demais, mas gostava de aparecer quando tinha certeza absoluta e comprovada pelo ISO9001 de que nada ia dar errado. Meti a explicação do meu pai: “na veia, corre sangue venoso. Na artéria, sangue arterial”. A professora fez silêncio. Me lançou um olhar penetrante lá da frente. Levantou-se da cadeira, começou a caminhar lentamente para o meu lado. Tensão na classe. E foi com o início de um leve sorriso que ela emendou outra pergunta: “E qual a diferença entre sangue venoso e sangue arterial?”. Praticamente cruzou a bola para eu cabecear. “O arterial é rico em oxigênio, e o venoso é rico em gás carbônico, e os dois fazem a circulação desses gases no corpo humano”.

Não me lembro bem se nessa hora explodiram fogos de artifício lá fora, se o Galvão saiu gritando “É tetra”, ou se foi só coisa da minha imaginação. O fato é que a professora começou a gargalhar e disse, bem alto: “Ah! Eu queria ter um filho assim!”. Aquilo era melhor do que ganhar nota alta. Filho da professora! (anos mais tarde, estudando para o vestibular, descobri que se a professora fosse médica formada, especialista em Sistema Circulatório, ia me dar só nota 5,0 - e olhe lá.). A classe respirou aliviada, barulho de cochichos festivos para todo lado.

Ainda melhor do que isso tudo, foi olhar para o lado e ver a Janaína sorrindo pra mim! Demorei para pegar no sono à noite.

João Paulo L Tito
Enviado por João Paulo L Tito em 27/11/2018
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