MEMÓRIAS
Ela entrou na cozinha, distraída como sempre, segurando uma caneca de café. Uma camisa branca e larga, nada por baixo. Quando o viu sentado à mesa, nu, degustando chá de camomila e umas torradas, sobressaltou-se e entornou o café, parte na camisa, parte no chão.
- Desastrada - disse-lhe ele e gargalhou perante a atrapalhação dela. - Agora tens de tirar isso, parece mal andares assim, com a camisa suja.
Ela também riu e gracejou - Querias, não era? E não tens roupa para vestir?
- Porquê? Não vês nada que não tenhas visto antes.
Ela riu de novo e foi logo para o banheiro, tomar o banho matinal e vestir-se para ir trabalhar.
Ele mirou-a e aquele olhar de desejo que ela tão bem conhecia cravou-se nas suas costas. Queimava e pior, era correspondido.
- Querido, não pode ser, já estou atrasada.
Ele olhou-a com pesar e depois encolheu os ombros, continuando a comer.
Ela conhecia as suas reações, portava-se como um menino mimado quando alguém contrariava os seus desejos.
Passados minutos, ela regressou para lhe dar um beijinho e sair. Ele mal correspondeu ao carinho dela, fazendo-a olhá-lo longamente. Depois baixou os olhos e dirigiu-se para a porta, saiu para o elevador.
Vários anos se passaram após esta cena, muitas brigas por razão nenhuma, quase sempre por culpa dele. Um dia fartara-se e quando ele chegou ao fim da tarde a casa viu os cabides vazios, os tampos de alguns móveis sem bibelôs. De resto, não levara mais nada.
Agora sentia um vazio enorme quando contemplava a cama king size e lá restava uma só almofada. Tudo o que a lembrava, as risadas dela quando lhe fazia cócegas, os beijos apaixonados, os seus arroubos, tudo eram memórias que tentava manter vivas. Aqueles passeios no parque, à beira-mar, sentindo o enlevo dela, a cabeça encostada ao ombro dele, os dedos entrelaçados, tudo isso infelizmente já era passado. Lágrimas molharam-lhe as faces.
Se o arrependimento matasse, ele já era cadáver há muito tempo.
Continuou o seu passeio a pé, o sol ia sumindo no horizonte, tal como a alegria de viver em seu coração.
Nessa noite, apesar de relutar, pois ela não atendera as dezenas de chamadas que ele lhe fizera, voltou a ligar-lhe. Ela não atendeu. Aí ele tentou uma última vez, certo que o seu amor-próprio não o deixaria ligar uma outra vez que fosse.
Ligou e aguardou o click do costume. Surpresa enorme, gigante, ela atendeu.
- Estou?
- Sou eu.
- Eu sei.
- Quero falar contigo, uma última vez que seja.
Ela fez uma pausa e depois questionou-o:
- Aonde?
O coração dele deu um pulo. Ela aceitava encontrar-se com ele!
- Pode ser no nosso café, onde tantas vezes estivemos juntos, a conversar?
- Sim, pode ser.
Uma luz intensa, uma sensação de felicidade indescritível apoderou-se dele. Ela tinha perdoado e Deus também.
Eufórico, esquecera-se de combinar a hora de encontro. Voltou a ligar e combinaram então esse encontro que tão feliz o havia deixado.