DE OLHOS FECHADOS - PARTE IV


 
 
 Ricardo começou a contar a Júlia sobre sua vida. Ela ouvia atentamente.
 
- Bem... você não acertou tudo, mas boa parte do que me aconteceu. Eu e minha ex - mulher nos conhecemos na faculdade quando  me mudei para Goiânia. Embora fôssemos da mesma cidade do interior, só nos conhecemos no curso de medicina e  nos apaixonamos. Eu era de um mundo e ela de outro. Do tipo ela filha de fazendeiro e eu do padeiro. Mesmo assim, nos apaixonamos e achei que seria o grande amor da minha vida, minha companheira eterna.



-  Durante o namoro comecei a perceber o quanto éramos diferentes e queríamos coisas diferentes. Eu quis ser médico por vocação. Sempre quis isso. Queria ir fazer trabalho voluntário por um tempo. Ela quis por status, acho que ela teria sido feliz fazendo outras coisas, mas houve muita pressão da família, então, ela fez todo um planejamento de ser médica, casar com um médico e ter filhos. A vida que ela sonhou se resumia a isso. Não era culpada por desejar isso, a vida dela sempre foi isso: aparências.

- Percebi que eu era apenas um cara adequado para o mundo dela e isso não me faria feliz. Nesse ínterim, eu conheci Sara, uma colega que mostrou ser a mulher que sempre quis para mim. Ela era idealista tanto quanto eu e tinha os mesmos desejos. Acho que foi o grande amor da minha vida.
- E o que houve? Perguntou Júlia.

-  Como meus sentimentos mudaram, comecei a me afastar de Karine, inventava desculpas para não vê-la e adiar os planos de casamentos alegando que eu precisava primeiro me estabilizar.  Era complicado porque eu não sabia o que fazer para terminar a relação. Sempre que eu tentava não dava certo.
 
- Os sentimentos mudam com o tempo, deixamos de ser os mesmos e, ás vezes,  a convivência nos faz perceber coisas no outro que não queremos para o resto das nossas vidas. Quando tentei terminar ela descobriu que estava grávida. Não podia deixá-la  naquela situação, não mesmo!

- Putz! Tu se lascou! Disse Júlia.

 
- Pois é. Decidimos nos casar e pasme! Fomos separados pelo casamento rsss.


 
Júlia percebeu uma ponta de tristeza e decepção no semblante de Ricardo, como se a separação ainda  doesse muito.

 
E por que não deu certo?


- Não sei, talvez, não era mesmo  para dar certo. Eu sabia que não ia dar certo porque éramos diferentes e eu  gostava de outra pessoa.

- E o que houve com Sara?
 
- Ela foi embora do país. Ingressou no  “médicos sem fronteiras” e vive feliz. Sempre acompanho o trabalho dela.

- Agora que está separado por que não vai atrás dela?
- Não faz mais sentido.  Já se passaram muitos anos.
 
 
- Quantos anos você ficou casado? Perguntou Júlia.
 - Doze anos.

- Bastante tempo.

- Sim. Eu tentei viver, mas fomos nos afastando e  quando vimos já não havia nada do que tínhamos sido.  Em casa não havia diálogo ou carinho, não saiamos juntos e mais parecíamos sócios de uma empresa chamada casamento. 


- Não sei como chegamos a esse ponto. Ela começou a me culpar por tudo que acontecia, até pela minha falta de ambição. Meu sogro é político e queriam que eu entrasse nesse jogo que abomino.

- Outro fator que pesou muito foi termos tido um filho autista. As brigas e acusações se tornaram a tônica da nossa vida a dois. Ela passou a se dedicar mais ao nosso filho e chegou a deixar de trabalhar por um tempo. E, depois quando retornou ao trabalho teve muita dificuldade de adaptação. Novamente eu era o culpado. 

 
- Então decidimos que era hora de termos outro filho, pois achávamos que seria a solução.  Eu achei que outro filho salvaria nosso casamento.

 
-  Mas a vida ainda nos reservava umas surpresas. Ela não engravidava mais, foi  quando descobrimos que o problema era comigo. Eu precisei passar por uma cirurgia e, finalmente, ela engravidou. Fiquei feliz porque gosto de crianças e sempre quis ter muitos filhos. Achei que as coisas entrariam nos eixos.


 
Júlia interrompeu Ricardo.



- Mas, vocês já tinham um filho. Como tinha problema?

 
- Sim.  Foi um grande milagre ela ter engravidado do primeiro filho, pois eu tinha varicocele. Não impede a gravidez, mas dfificulta.



- Infelizmente, ela perdeu o bebê com três meses e  foi traumático demais!


- Pouco tempo depois ela engravidou de novo e novamente perdeu o bebê.

- Assim, descobrimos nossos problemas de fertilidade. Ela tinha desenvolvido um problema no útero e teve que fazer um tratamento, mas  até  descobrirmos, ela sofreu quatro abortos.

- Desgastou-nos de forma descomunal. Não queira saber como dói  passar por tudo isso.



- Na última tentativa decidimos que iriamos adotar uma criança, não aguentava mais passar por aquilo. Ela estava depressiva. Adotamos  um garoto com três dias de nascido.  Foi uma luz para nossas vidas a chegada daquele bebê, pois vi a alegria  no  semblante  de Karine novamente.

- Por dois meses após a chegada dele fomos felizes. Porém, ela engravidou de forma inesperada. E, novamente veio o medo e a necessidade de repouso absoluto. Mas, dessa vez tivemos uma filha que nasceu com pouco mais de sete meses e bastante saudável.


 
- Porém, houve uma ruptura muito grande  no afeto entre minha esposa e nossos  outros dois filhos. Ela se afastou deles e não conseguiu recuperar o afeto.  Chegou mesmo a rejeitá-los.

- Ela  sempre teve dificuldade em aceitar  nosso filho que é autista, e o outro que adotamos, ela passou a rejeitá-lo totalmente. Durante o tempo que estava grávida perdeu contato com eles e isso ela não conseguiu recuperar. Eu, por outro lado, me apeguei demasiadamente a eles e acabei tentando suprir a falta de afeto da mãe.

 

-  Até que chegamos num ponto que extrapolou. Separamo-nos, mas é difícil lidar com a falta das crianças. Não posso separá-los, são muito próximos a mim. Ela está fazendo tratamento, espero que funcione.


 -  Júlia, eu tentei muito, mas ela me culpa por tudo no mundo, não sei como agir.  Ela perdeu o senso. Embora entenda que ela sofreu demais com a perda dos bebês. Virou uma obsessão! Queríamos demais! Como se não tivéssemos esse filho não seríamos completos, mas já éramos. 

 
Ricardo tirou fotos dos filhos e mostrou para Júlia.



- Puxa, são lindos!


- São sim. Vou viajar com eles no próximo mês.

 
 Júlia sentiu-se encorajada para falar.




- Leo foi meu amigo de infância, foi meu tudo a vida inteira.  Ele é engenheiro e casar foi algo natural pra gente.


- Tenho trinta e três anos e ele está em todas as minhas lembranças.

- Foi o grande amor da minha vida e acreditava ter sido o dele também, mas, como você mesmo disse, talvez, haja alguma explicação que não conhecemos para que as pessoas não sejam felizes.


- Há cerca de três anos descobri que ele estava tento um "caso". Foi difícil aceitar que aquele homem com quem eu convivia estivesse fazendo isso, e principalmente, mentindo para mim.


- Era uma estagiária do  nosso escritório. Que ele dizia para mim que ela era lésbica rsss.

 

- Rssssss. Essa é boa! Disse Ricardo.



- Sim. O  mentiroso ainda criou uma mentira escabrosa para me enganar!
 

- Eu fui descobrindo cada vez mais coisas e, de repente, vi que minha vida era um "faz de conta", uma grande mentira.  Aquele homem era um desconhecido para mim.

 
- Nada mais fazia sentido. Era como se toda a humanidade não prestasse, havia um mundo paralelo que eu não conhecia ou nunca quis conhecer!



- Ainda assim, tentamos recomeçar, mas,  perder a confiança em alguém é como um cristal partido, a gente tenta remedar, mas nunca mais será o mesmo. Perdoar é meio que um falso perdão,  tanto de quem pede como por quem dar.  É uma reconstrução difícil.  
 

- Eu odeio mentiras. Ele construiu uma vida de mentiras.  Continuou Júlia.



- Dois meses depois eu descobri que ele ainda mentia para mim. Então, foi o fim, eu afundei.

- Numa noite, estava na sacada do apartamento e a dor era tanta que eu não conseguia respirar, fui até a sacada e todos os pensamentos do mundo me envolviam, eu já não queria continuar, só queria que tudo parasse! E era tão simples, bastava não existir. O que haveria do outro lado? O que me esperava não podia ser pior que aquele vazio dentro de mim, tudo era escuro,  só via dor, ilusão, frio, tristeza. De repente, eu sentia - me acima do mundo, sentia que tinha asas, era só mais um segundo e tudo estaria acabado, não haveria mais sol ou lua. Eu não queria pensar não queria entender.
 

- Então, fechei os olhos e  decidi pular.



- E quando fechei os olhos  vi o sorriso do meu pai enquanto fazia  suas esculturas ou escrevia,  vi a dor da minha mãe quando ele morreu e vi minha dor naquele momento, sentia que carregava todas as dores do mundo, mas a minha era maior e mais profunda. 


- Eu só precisava pular e quando abrisse nada mais estaria ali.

- Mas, as imagens continuaram. Vi uma escultura que  painho me deu,  era uma cavalo de argila e ele não saia da minha mente, por que aquele cavalo estava ali? Eu não sabia, mas ele não me deixava pular e eu precisava pular, eu queria pular, não aguentava mais aquele sofrimento.



 
-  Mas  eu vi  o cavalo... acordei no hospital  após ter desmaiado depois de três dias sem comer.



- Sequer sabia quanto tempo eu tinha me isolado do mundo. Foi quando descobri que estava grávida.


 
- Bem... depois daquele dia eu renasci, escolhi viver intensamente e correr atrás dos meus sonhos. Refiz-me por completo porque tinha uma vida que dependia da minha e creio que o universo me deu outra chance.



- Mas, ainda estou em processo de separação e tem sido muito difícil, pois meu ex- marido não aceita  de jeito nenhum. Estamos no meio de uma batalha judicial e ele me persegue em todos os  sentidos. Atualmente tem um medida protetiva contra ele porque me agrediu,  não é fácil!  Depois disso tudo, tornei- me arredia e odeio mentiras.

 
- Júlia, tem uma coisa que acho que deveria saber, nunca contei para ninguém, mas não quero mentir ou omitir isso.

- Pode falar. Disse Júlia

- Caio, meu filho mais velho, não é meu filho biológico. Ela engravidou quando soube que eu tinha me envolvido  com outra pessoa, pois sabia que eu jamais a deixaria grávida.  Descobri tempos depois. Embora tenha sido algo horrível o que ela fez, sei que foi num momento de desespero e a perdoei. E de qualquer modo ele sempre será meu filho. 



Júlia estava boquiaberta! Olhando para Ricardo sendo tão sincero, percebeu que ele era muito sozinho e, confessar aquele segredo, parecia lhe fazer bem. Sentiu vontade de abraçá-lo. Num instinto protetivo, aproximou-se dele e o beijou, mas aquele beijo também lhe despertou outros instintos...

 
Enquanto conversavam não perceberam que alguém os observava.