Conte-me

-Está frio aqui, aumenta o aquecedor, por favor- Digo para Scarlet.

-Tudo bem, volto já.- Diz ela se levantando a poltrona.

Estou na casa da Scarlet e a primeira coias que passa na minha cabeça é "Estou com frio". Tudo bem se sou friorento, mas eu acho que meu corpo deveria começar um processo de mutação logo para eu me adaptar ao mundo. Acho que meu cérebro também, né? Quer dizer, deixa pra lá.

-E agora? Está ok?- Pergunta Scarlet com tom de preocupação enquanto senta na poltrona, que aparentemente para ser bem suave a textura dela, colocando a sua almofada de Grey's Anatomy em cima de suas coxas.

-Tá melhorando. Obrigado, Scar!- Digo com um sorriso.

-Vamos, Carl. Conte-me.- Diz Scar mais séria.

-Bom... Victória foi uma garota sensacional, sabe? Não sei bem como isso ocorreu. Mas o vazio ainda permanece...

Me calo por um tempo e sinto aquele cheiro de pelo molhado. É o Gumball, gato da Scarlet. Está chovendo, ele deve ter se molhado lá na varanda. Não parece irritado por ter se molhado, só aparenta não ter curtido muito essa chuva.Depois de formular os pensamentos, volto a falar.

-Olha, diria que isso vem desde o início.

-Como assim?- Pergunta Scarlet com tom de curiosidade.

-A vida não é fácil e nunca foi para ninguém. Comigo não foi diferente. Desde que nasci fui destinado ao caos, isso é fato. Eu me adaptei a tantas situações durante a vida que hoje em dia é mais fácil, é mais tranquilo de se resolver, pois já passei por tanta coisa que eu tenho um tutorial para diversas situações e eu gosto disso. Gosto de saber o que fazer, gosto de estar confortável com a situação. Não ter um pai tão presente foi a chave para isso. Tudo que é bom tem um preço... Você ser "expert" em lidar com problemas tem um preço alto. Enquanto eu tentava, ele estava lá me criticando. Não sei cantar pelo fato de ter sido humilhado pelo próprio pai no Karaokê de família. Isso me ajudou a lidar com pessoas que me humilham, envergonham ou dizem que não posso algo. O estímulo que eu recebia era basicamente ameaças de punição, então tive que aprender a lidar com ordens e não com razão.

-Com licença, Carl. Mas o que tudo isso tem a ver? Com todo respeito, claro.- Scarlet me questiona.

-Tudo, Scar. Dê-me um tempo e tudo ficará claro.

-Okay, Tolkien, prossiga.- Diz ela rindo.

-Na minha mente, cada um tem seu estoque de lágrimas que pode chorar na vida. Acho que acabei o meu estoque só na minha infância. O problema não é não ter um pai presente e sim quando ele é presente, só faz você se afundar mais. Não choro em enterros, não choro por relacionamentos, não choro por dias ruins... Eu só sinto. Se tivéssemos matado aquela família sendo sequestrada, Scar, eu não choraria uma sequer gota de lágrima! Eu simplesmente só sentiria! Não porque não quero, mas sim porque não consigo. Fui atrasado na minha vida inteira. Não sabia andar de ônibus, não sabia jogar bola, na verdade eu não sei até hoje. Não sabia fazer amigos, não sabia chegar numa garota! Sabe o que é você ter que aprender tudo sozinho e quando não der certo você não ter a quem pedir ajuda, conselhos ou dicas? Tive que me virar para ser quem sou. E no final de tudo eu achei que estava preparado para Victória. Subestimei ela. Achei que seria só mais um desafio que eu poderia entrar no caderninho da minha mente e dizer: "Vejamos em qual capítulo resolvo isto". Mas não foi assim. No início, Victória era uma garota um pouco tímida, porém foi bacana de lidar. Ela não era tão experiente, mas tive muitas experiências com ela, diversas. Ela se soltou comigo e vi uma parte dela que ela quis me mostrar, mas não mostrou antes. Era uma garota divertida, fantástica. Bebia comigo, enchia a cara mesmo! A gente falava de como seria bacana nosso futuro como dois velhinhos trabalhando como Sensei de Judô, uma ideia bem estranha, mas era legal. Foi uma mágica que foi desaparecendo por outros fatores. Do nada, Victória começou a se tornar uma pessoa possessiva, fria e "estranha". Estávamos virando mais um casal "profissional" do que de amigos. Brincadeiras como "Ah, Victória. Vai se foder!" ela não aturava, pois dizia ser um desrespeito grande a ela. Quando não estava nas ruas defendendo um cidade corrompida pelas drogas e assaltos, eu deveria dedicar 100% do meu tempo à ela! Sair como os amigos? Só se ela estivesse ocupada. Depois fomos ficando cômodos a esta situação. O sexo mantinha nossa união de pé. Até que discutimos...-Sinto um frio na barriga e dou uma pequena pausa.

-No final das contas ela dizia me amar, mas não iria dar certo. Não consegui compreender, mas tivemos que vazar um da vida do outro. Tanto que antes de termos essa conversa, eu conseguia sentir ela tentando se distanciar de mim, eu que não percebi isto. Terminamos.

Scarlet, meio que em choque, pensa antes de falar algo. Aliás, pensou muito.

-Carl... É difícil quando estas coisa acontecem. Você finalmente falou! Como se sente?

Respiro fundo e falo:

-Eu sinto que perdi alguém. Mas ao mesmo tempo não. Mas ao mesmo tempo sim! Como pode isso?

-Olha, já se fazem 6 anos e você só me disse tudo isso agora. Isso foi um grande avanço, além disso você viu ela desde aqueles tempos?

-Não, juro para você. Fazem 6 anos que não vejo o rosto de Victória. Claro que ouvi falar dela. É a jornalista que está em alta, reconheço seu talento.

-Com licença... Me desculpem se estou atrapalhando. Já faz horas e eu achei que a barra estava limpa... Vou só pegar o leite. Rapidão, prometo!

Este foi o Jeremy, marido da Scar. Ele é um cara sensacional, a minha amizade com ele é distante, mas verdadeira.

-Jeremy...- Fala Scarlet com um tom manso.

-Relaxa, Scar. Está tudo bem.- Digo para ela.

-Tchau, pessoal.- Jeremy se despede enquanto entra no quarto.

-Em resumo... Victória foi o maior problema que tive em minha vida, de longe foi o maior. Victória e meu pai, dois a 80Km/h, Victória ganha.

Scar da um risada e fala:

-Mas por que fala isso sorrindo?

-Porque, Scarlet...- Tento segurar o sorriso, mas sai no canto da boca.- A confusão só é boa quando o problema é grande. E pode ter certeza, Victória foi o maior e melhor problema que tive em toda minha vida... Repetiria sem pensar duas vezes.

Scar se levanta me dá um abraço e um beijo na minha testa.

-Acho que está tarde, me leva até a porta?- Pergunto à ela.

-Claro!

Aqui que eu desço as escadas na chuva e me esbarro com Victória segurando um guarda-chuva, correto? Errado! Aqui é a vida real! Aqui é onde as coisas saem de forma aleatória. Ás vezes da certo, ás vezes não. Por isso a vida é boa, os momentos bons só são "bons" porque temos muitos problemas, ou seja, qualquer alívio, felicidade e/ou prazer nos fará bem.

Vou só comprar meu remédio para dormir na farmácia da esquina e dormir para poder iniciar o sábado somente 15:00 horas. Procurando o remédio...

-Moço, o senhor sabe me dizer se...- Olho para a pessoa que dirigiu a palavra à mim e ela se cala.

Olha, de longe eu reconheceria uma linda garota baixinha, magra, parda, dos olhos puxados e cabelos com mechas loiras.

-Desculpa... Achei que era alguém que trabalhava aqui.- Ela fica vermelha.

Depois de 7 segundos de silencio constrangedor ela diz:

-Já nos conhecemos?

Eu sorrio mostrando os dentes e digo:

-Victória, certo?

Pois é, eu falei que ás vezes dá certo, outras vezes não. O resto é história, ou melhor... Um problemão! Mas que problema que me faz bem...

Vinícius Pimentel
Enviado por Vinícius Pimentel em 02/03/2019
Código do texto: T6587580
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