BENDITO FERIADO PROLONGADO

Essa pequena história se passa bem no início da década de 90, em uma época em que não existiam smartphones ou outras tecnologias que pudessem reduzir a comunicação verbal durante a convivência nas escolas (o Tamagotchi, o Aquaplay, o Playmobil e o Lego eram artigos de luxo). Na hora do intervalo, meninas trocavam papel de carta, jogavam amarelinha ou escreviam em seus diários rosados e perfumados. Os meninos aglomeravam-se nas quadras de esportes, liam revistas dos “Escoteiros Mirins”, rodavam os seus peões ou se ocupavam com algum jogo de tabuleiro.

Carlos era um desses meninos. Rapaz alto, de pernas longas, pele bem rosada, mãos e pés grandes e rosto com espinhas, típicas de adolescente. Apesar de assistir às aulas sentado nas carteiras do fundo, costumava ser considerado um bom aluno pela maioria dos professores. Era calado, educado e comedido, de poucos e bons amigos. Guardava os seus livros e pertences em uma mochila cinza e surrada da Company.

Maria, por sua vez, era miúda e sentava lá na frente. Falante, porém compenetrada, sempre tomava a frente representando a turma; era a primeira a responder as perguntas lançadas pelos professores, recitava poesias e escrevia “o tempo todo sobre tudo” em seu caderno de anotações. Andava sempre com os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo e tinha uma exclusiva lancheira de metal da “Mulher Maravilha”, presente do seu tio que morava fora.

Carlos e Maria tinham ambos, 13 anos. Apesar de geograficamente separados dentro da sala, existia algo que sempre os aproximava: o gosto pela leitura. Vez ou outra se encontravam sorridentes no guichê de empréstimos de livros, onde Dona Sônia os tratava pelo nome e já mantinha reservada as gastas fichas dos dois sempre à mão, principalmente às sextas-feiras, o dia para escolher livros para o fim de semana.

Naquela sexta, em especial, iniciaria um feriado prolongado, e isso significava que o empréstimo de livros poderia ser dobrado, por aluno. Mergulhados na escolha difícil entre romances, aventuras, suspense, policial ou ficção, Carlos e Maria circulavam sorridentes por entre as altas prateleiras daquela biblioteca. Em dado momento, Carlos parou o olhar e as mãos entre o “Escaravelho do Diabo” e o “Menino de Asas”, da Coleção Vagalume, bem à sua frente. Ele parou o olhar nos livros, mas não era os livros que ele enxergava. Pela primeira vez, em quase dois anos de convivência, ele reparou melhor, por entre os exemplares, o rabo de cavalo balançante de Maria. O que ele pensou ao olhar para ela o deixou ruborizado, e, após contemplar por alguns instantes, desviou o olhar envergonhado e voltou ao seu árduo ofício.

Escolhidos os livros, ambos, Carlos e Maria, com as duas mãos ocupadas por uma pequena montanha de exemplares, começaram quase que simultaneamente a se dirigir ao guichê de Dona Sônia, que já estava com as duas fichas róseas nas mãos para bater os carimbos. Maria, toda serelepe, andou apressada na frente pois “a preferência é sempre das garotas”, como ela geralmente dizia para Carlos. Nesse momento, não se sabe bem por qual motivo, uma saliência no piso de tacos encontrou-se com o grande pé direito de Carlos, que se desequilibrou e… Catapluft! Aquele corpão inteiro estatelado de uma vez no chão, rosto para baixo, bem aos pés da pequena Maria. Livros espalhados por todas as bandas, Carlos tentando se levantar com as mãos na boca, escondendo a vergonha, a dor e algo que sangrava.

Maria, mais que depressa, desvencilhou-se dos livros em suas mãos sobre o balcão de Dona Sônia e foi prestar ajuda ao colega, percebendo que o mesmo havia perdido um dente, tamanha foi a pancada com que caiu no chão. Tateando o local, achou o canino de Carlos enlameado em sangue, limpou-o de qualquer jeito e enfiou no bolso do uniforme.

Carlos, já recomposto, aceitou a ajuda de Maria para ir lavar-se. Devido a diferença de altura, a mesma começou a conduzi-lo carinhosamente, segurando o seu cotovelo até o lavabo. Carlos sentiu as mãos gélidas de Maria tocando a sua pele, mesmo com o sol queimando com calor o cimento do pátio e refletindo luz no caminho que eles percorriam.

Já era fim de expediente de aula, a maioria dos alunos e professores já haviam ido embora, mais apressados que o habitual para aproveitar logo o feriado prolongado. Os banheiros daquela escola, em duplas, mantinham o lavatório em sua parte externa, no meio das duas portas, feminino e masculino. A dupla chegou aos sanitários mais próximos da biblioteca. Aqueles, recém lavados pela caprichosa equipe de limpeza, cheiravam a desinfetante de pinho. Carlos, desgarrando-se das mãos preocupadas de Maria, abriu a torneira e começou a lavar o seu rosto ensanguentado e sujo pela queda. Maria manteve-se ali bem próxima, observando e tentando auxiliar de alguma forma.

Carlos, ainda um pouco constrangido com tudo, achou que o afogueamento em sua face era devido a vergonha do fato que ocorrera a pouco. Mas não. A proximidade de Maria, seu corpo tacanho muito próximo ao dele tentando auxiliá-lo o deixava deveras desconcertado…

Repentinamente, já com o rosto lavado, porém ainda molhado, Carlos virou-se de frente para Maria, fitando com firmeza os seus olhos. Queria entender aquele desconcerto, queria saber o que deixava as mãos dela tão geladas, queria compreender as suas pernas bambas e o seu coração que batia tão forte, tão forte… Já quase em sua garganta.

Instintivamente, ele começou a arquear o seu corpo comprido, abaixando os ombros, com a intenção de aproximar o seu rosto do rosto de Maria. Ele não sabia bem o que fazer, como fazer, mas o seu corpo, seus hormônios juvenis, e quem sabe até a sua “voz interna” masculina o impelia a fazer exatamente aquilo, daquela forma. Era mais forte do que ele! Maria, sem entender direito o que acontecia, manteve-se imóvel, petrificada, sem reação, e sentiu naquele momento as grandes mãos de Carlos cobrindo as suas.

O coração dela revirou-se no peito. Não, espera. Não era o coração que revirava! Maria, surpresa, não conseguia raciocinar direito e nem falar nada. Pensamentos confusos em sua mente: Será se ali aconteceria o seu primeiro beijo? Será se a boca de Carlos seria lembrada para sempre como a primeira boca que ela beijou? Será se ela saberia o que fazer? Será se alguém passando ali veria aquilo? Algo continuava a revirar dentro dela enquanto Carlos se aproximava vagarosamente. Ela sorvia, agora sofregamente e profundamente, o aroma enjoado do pinho do desinfetante. Lembrou que havia se alimentado rapidamente no horário do intervalo, e conseguiu perceber então o que realmente estava se revirando dentro dela. Nessa hora, Carlos, cada vez mais próximo, entreabriu um tímido sorriso, mostrando então o espaço antes ocupado pelo dente perdido.

Vendo aquilo, fatalmente, algo quente e incontrolável quis sair pela boca de Maria. O cheiro forte do pinho, o enorme lanche da merendeira de metal, o cheiro e a cor do sangue ainda por ali e a emoção daquele momento… Foi impossível segurar o seu miúdo estômago. Ela até tentou tampar tudo aquilo com a sua mão, levando-a a boca, desviar o rosto, correr para dentro do banheiro… Mas foi tudo em vão.

De uma vez só, em um soluço involuntário, banhou o seu próprio uniforme, o uniforme e parte do rosto de Carlos, os braços dele, o chão, a pia, as paredes, as possibilidades, as expectativas, a vida!… Com aquela massa viscosa e grudenta que saiu em jato pela sua boca. Carlos, nesse momento, compadecido da situação de Maria e ainda assustado pela “reação” dela, afastou-se um pouco para ver o estrago.

Era a visão do inferno! Maria, tentando limpar como podia aquela lambança toda, uma mistura de sentimentos e pensamentos, fitou Carlos novamente, agora com o maior constrangimento do planeta Terra. Ele, sorrindo, não esboçava nenhum nojo, asco ou repugnância, e, para “quebrar o gelo” enquanto tentava arrumar também aquela bagunça nojenta, disse manhoso, com um esboço de risada no canto da boca, e assoviando engraçado devido a falta do dente:

– Maria, um dia você me disse que quando você “crescer” irá escrever um livro de contos, que será um sucesso no mundo todo. Confere?

Maria, que não conseguia dizer até então nenhuma palavra devido ao vexame, trêmula e ainda se recuperando do susto e do espasmo, acenou positivamente com a cabeça. Carlos continuou:

– Você promete que essa nossa tarde trágica, minha queda, meu dente e minha primeira tentativa na vida de beijar uma garota que acabou vomitando em mim será tema de um dos seus contos? Promete?

E abriu um sorrisão sem dente que fez os dois caírem numa enorme gargalhada!

Bendito feriado prolongado…

P.S.: Parece que Carlos fez um implante dentário alguns dias depois. Maria, após o feriado prolongado, devolveu a ele o canino que havia ficado no bolso dela. Carlos então teve uma ideia para eternizar aquele pequeno desastre pessoal dos dois: transformou o dente em um colar que usou até terminar o colegial. Tanto um quanto o outro, quando olhavam aquele apetrecho, lembravam daquela tarde fatídica e caiam sempre na gargalhada. Seria para sempre, desde então, o segredo de Carlos e Maria.

[Nívea Almeida, 01.09.2017]