EM VIAGEM
                          (Texto original de janeiro de 1992)

 
...shorts macacão camisetas de manga sem manga sandália de dedo saída de praia dourada maiô azul marinho o outro vermelho calcinha cor da pele cor de rosa azul clara soutien preto calcinha preta livro de poemas um de contos guarda chuva dois romances para dias de chuva intensa ou sol desesperado caderno para anotações ancestrais pochete sandália mais composta desodorante sem cheiro lenços de papel shampoo condicionador protetor solar pasta dental sensodyne para dentes sensíveis fio dental aspirina sabonete maquilagens semana que vem a gente se vê lixa de unhas cotonete acetona óculos de sol agora seis da tarde seis dias longe as pessoas cansam-me demais às vezes quase sempre como eu me canso a mim mesma canso-as quase sempre assim nos cansando mutuamente chapéu de sol bronzeador e nunca sei o que você pensa o quê realmente não quero pensar nisso agora o sol avermelhando os cabelos a água azul como os tempos de inocência e esquecimento lembro todo o tempo de tudo de vez em quando dói um pouco menos creme hidratante bronzeador calça jeans de reserva methiolate linhas agulha máquina fotográfica filmes é óbvio agasalho saia mais composta blusa de renda par de meias pretas para sei lá o quê bolsa social amanhã caminhando horas você não sabe de nada desliguei seu som desliguei seu silêncio. Raul meu homem tem rosto de formato triangular amanhã sete horas da manhã poltrona trinta e três trinta e quatro são sete com a ex-mulher de Raul somos sete no completo mas nenhum de nós senão eu  sabe que somos tal número mágico para certas tradições número de sorte em determinadas circunstâncias número de fatalidade se faltar alguma coisa sempre falta compro lá alguém falou escreveu algo de que não consigo lembrar sobre a liberdade e as estrelas não me deixam dormir é só o tic tac do relógio no apartamento silencioso mosteiro beneditino em meditação ela dorme tranquila a mãe de olhos verdes e pele de leite de quem emergi há quase quatro décadas daqui a pouco impossível manter o fingimento dos olhos fechados entreabertos há pouco para observar num relance o relógio quatro horas trinta minutos mais usufruto dos olhos fechados. Como é curioso um par de sapatos debaixo da cama!


        Madrugada fresca feito banca de frutas. O metrô engole as gentes e a malas. O motorista do ônibus que nos leva ao litoral lembra Wagner, meu primo. A família fez uma churrascada no Natal mas eu estava na pior. Não fui. Vaguinho, saudade.
        No horário de verão o dia vai ficando azul aos pouquinhos. A cidade para trás mais e mais para trás. Quando Daniel viaja para o seu refúgio em Minas sente-se como eu neste momento? É proibido fumar. Daqui a uns cinco cigarros proibidos faremos uma parada.

        Café, salgadinho, caixa, toalete, xixi rápido nessas nem deu tempo para terminar o cigarro. Lembra, Raul, quando uma pomba pousou no seu braço pousado num banco da Praça da República? E ela ficou ali no seu braço um tempão, e você um São Francisco árvore no meio da campina casinha com chaminé. Você com seus óculos de ver de perto, seus óculos de ver de longe. Você com seus longos já cheios de brancos cabelos lisos presos corretamente sobre a nuca no rabo de cavalo. Você com sua também lisa pele de índio e a longa cicatriz no abdômen. Você com sua escrita sempre alinear, a sublevação de cada um dos meus ritmos familiares. A paisagem também tem cicatrizes entre as plantações e as vacas... vacas... o Japão para mim. O ônibus entidade estranha a carregar vozes difusas. Deliciosa a serra correndo enquanto a gente se exime de responsabilidades palavra imensa como a cidade a serra o oceano tudo junto. Imóvel como as vacas, por fora. Vontade de ser só fora. Inteira fora. Os olhos duas fendas pontes barcos cachoeiras duas aves um tronco. A Noruega é longe. A face noruega da coisas. Sol à meia-noite. Eu no alto do penhasco abrupto, debruçada à beira do abismo, olhando em vertigem, quem? O marinheiro do Maelstrom. Na minha cabeça os em segundos brancos eriçados cabelos do marinheiro sobrevivente do Maelstron. O oceano, daqui de cima, cintila de um azul plácido. Apareceu de repente na curva, oxalá daqui a mil anos continue a aparecer de repente na curva.
        Ah, Daniel jamais se sentou, jamais se sentará comigo em um banco da Praça da República. Não porque não o quisesse, não porque não o queira: por ausência absoluta de direitos. Daniel, meu Maelstrom, meu verdadeiro mar norueguês, meu pânico absoluto. Daniel, cujo silêncio engana como o silêncio de Deus, o sono dos serafins. Sete serafins. Penso em nós, sete serafins, sete serafins a dormir. Qual será o fim de tudo isto? Haverá em algum Tempo, um fim para tudo isto? Daniel com seus telefonemas  a ouvir-me no vácuo. Daniel com sua loucura. Daniel com minha loucura. Eu no bojo de nós dois a calar-nos os gritos quase inumanos. Daniel, Senhor no Mundo, prisioneiro no seu Mundo Interior.  Mesmo na Noruega, o mar às vezes repousa. Raul se quis violinista de orquestra de câmara, Daniel, violinista de orquestra sinfônica. Daniel e Raul, o Mesmo, num átimo, por causa de um violino. Raul se quis num sítio onde o violino coubesse. Raul, o anarquista, avesso a gêneros, mercados... a quaisquer clubes que o aceitem como sócio, como se fosse possível a algum clube aceitar Raul como sócio. E eu a circular entre esses Loucos-Lúcidos e a Casa e os Alunos e a Mãe e os Outros e os Íntimos Que Não Sabem, tantas Estrelas em galáxias a centenas de milhares de anos-luz umas das outras.
        Enquanto se dorme o mundo descansa, mesmo nos pesadelos. Enquanto o mundo desce a serra eu permaneço de ouvidos tapados, aliás, como todos, a vaca provisoriamente forte dentro de mim. Surgem os preâmbulos da cidade marítima de nome indígena, nome longo cujo significado os seus criadores conheciam e eu não, cidadezinha a estender suas ruas antigas com a igrejinha a praça o parque de diversões a roda-gigante o cavalinho a casa do monstro a barraca do churro a barraca da pipoca a barraca do algodão doce a música sertaneja. A areia se estende, o mar está no nível do mar. Esteiras chapéus óculos de sol cadeiras de vime cervejas caipirinhas sorvetes biquínis barrigas coxas pernas seios fios-dentais garotos sarados bolas velhos gordos jogando petecas com seus pares castelos de areia coqueiros ouvidos enfim destapados. Ao fundo, um navio. O ônibus cruza a cidadezinha, como um deus orgulhoso. Daqui a três dias Raul faz cinquenta anos, daqui a menos de um mês você, meu Maelstron, igualmente chega ao centro de seu estranho século, neste início de segundo ano da última década do segundo milênio. O ônibus continua em direção ao Norte e poderia continuar para sempre a fim de que eu pudesse, ad infinitum, prosseguir saboreando essa urgência de chegar e de partir.