FRAGMENTOS DE NÓS DOIS

O gotejar das biqueiras anunciam o motivo da tarde terminar tão opaca e do sol ter ido embora mais cedo. O céu pesado e gotejante, a diluir-se, atritando o seu peso sobre o asfalto quente fazendo subir o cheiro do mormaço abrasado pela sequência de vários dias incandescidos, indica que os botões sofrerão a metamorfose, as roseiras mudarão as suas vestes e os campos, os jardins e os pomares serão pintados de várias cores, geometrizados por muitas formas e perfumados pelos mais diversos aromas. Enquanto isso, o odor resultante da chuva e a umidade presente no ar vestem os meus sentidos, no entanto a folha branca que ora estar sobre a mesa, permanece nua, pois as palavras se manifestam apenas em sensações presas e gritos abafados que não desembocam de garganta a fora e são corroídas pelo vácuo entre o abstrato e o concreto mesmo antes de se transformarem em vocábulos. E a folha branca despojada sobre a mesa, permanece lá, e só após alguns rabiscos com frases descontinuadas, fará companhia a tantos outros poemas inacabados, amaçados e jogados dentro de uma gaveta, que nos últimos tempos, vem servindo de depósito para guardar pedaços de nós dois.

Então como dizer-lhe que dentro do meu peito o pulsar que lateja ainda é abraçado pelas lembranças dela! Que o seu sorriso acompanhado do seu olhar penetrante que eu carregava na carteira está moldurado lá em cima do criado-mudo encostado ao travesseiro! Que o entorpecer de sua fragrância e as marcas do último abraço ainda estão pendurados no cabide! E como dizer que nem mesmo a plasticidade do tempo que manifesta a sua arte nas rugas e nos poucos grisalhos, que já são quase perceptíveis, não me sujeitaram a mudanças. Pois diferentemente dos botões, das roseiras e dos campos, após a chuva eu ainda permanecerei o mesmo. E será sempre assim, até que os nossos lábios mais uma vez ao serem fundidos pelo calor de um beijo se misturem. E estes lábios inertes e frios que ainda alimentam-se da vontade de materializar aquele beijo que não foi dado, deixem de ser obsoletos e adormecidos.

Hoje mais cedo eu a vi. E os boatos do seu retorno foram confirmados. Mesmo sem estar sob a guarda vigilante do olhar do seu pai ou da sua mãe. E mesmo já sendo outros tempos e nós não tendo mais dezessete, preferi não me aproximar, e de longe, segui-a por algum momento e pude perceber que os seus cabelos continuam naturais, pretos e encaracolados. Só um pouco mais curtos. Os seus lábios rubros e aveludados realçados por um belo sorriso, ainda continuam exalando desejo e doçura. Ao andar a mesma postura: passos largos e firmes, braços soltos e um olhar atento e penetrante. Só me afligia uma coisa: Será se ela ainda pensa em me? Será se ela ainda guarda a minha foto que levou para o colégio das freiras dentro da capa de uma bíblia? Erámos tão jovens e o nosso amor não merecia tamanha agressividade. A briga foi dos nossos avós, e não nossa! Grande idiotice, morreram todos e as terras continuam lá. Hoje desapropriadas pelo governo para reforma agrária. Só não entendo, os nossos pais nunca foram lá, e alimentaram essa rixa besta como se fosse uma herança genética e usaram isso como pretexto, para separar nós dois.

Continuei seguindo-a, e ela andava inquieta como se procurasse alguma coisa. Lógico! Ela estava a procurar o pé de azeitonas que quando eu também retornei do colégio militar já haviam colocado em seu lugar uma estátua do Santo Padroeiro da cidade. Assim como todas as outras árvores haviam sido derrubadas para a construção de uma pracinha e o concreto já chegava as margens do rio onde tomávamos banho e as mulheres lavavam roupas, e as nossas casas viraram apenas casarões velhos, monumentos históricos que viram de perto a chegada do “quase progresso”. Porém como naquela época a derrubada era recente, após alguns dias de busca nas duas padarias da cidade que compraram a lenha a prefeitura, consegui resgatar a galha com a nossa gravura. Apesar de quase engolidos pelo engrossar da madeira os nossos nomes ainda estavam lá dentro de um coração com a seguinte frase: “Sempre buscaremos um ao outro, e refaremos a nossa história, se o nosso amor sobrevive às migalhas, também resistirá ao tempo e um dia transbordará em farturas”.

O pé de azeitonas não estava mais lá, mas percebi que pra ela assim como pra me, era como se ainda estivesse no mesmo lugar. E nós dois em baixo correndo e atirando azeitonas um no outro, e após sermos vencidos pelo cansaço e rolarmos pelo chão, o som da nossa respiração era silenciado pelo desejo gritante de um beijo. Vi os seus olhos lagrimejarem acompanhados dos meus, não sei se pela falta dos nossos vestígios, se por nossas memórias revividas ou se por tudo o que o pé de azeitonas representava em nossas vidas, afinal de contas ele foi um ponto de encontros e despedidas. Era lá que planejávamos a nossa vida. Quais profissões iriamos seguir. Há! Falar em profissão, eu tinha decidido ser veterinário, acabei ingressando na carreia miliar. Ela seria enfermeira, espero que tenha conseguido. Imaginávamos até quantos filhos iriamos ter e os lugares que conheceríamos juntos. Foi através da nossa gravura, que fomos descobertos, e por isso o pé de azeitonas foi o local do nosso último beijo e da última vez que os nossos olhos se olharam ao sermos arrancados um do outro.

Continuei observando-a e o meu coração quase me leva ao seu encontro. Foi quando o seu celular chamou e os seus passos se apressaram em regresso. E eu percebi que aquele ainda não era o momento certo. Pela reação, talvez aquela chamada se tratasse da piora de sua mãe que estava a dias hospitalizada e sem contar da morte recente do seu pai. Sei muito bem o que ela estava sentindo. Os meus pais já não estavam mais conosco a tempos. Motivo do meu primeiro regresso a alguns anos quando resgatei a galha com nossa gravura e pedi para que fosse colocada no pequeno museu da cidade. Afinal de contas, lá estava escrito a essência da força do nosso amor, materializada em fragmentos de saudades.

E agora nesse momento, a noite se estende, a chuva escorre e a falta dela de forma impetuosa grita e através de vozes conflituosas, palavras se debatem dentro do meu peito. Na cabeça as lembranças atropelam umas às outras, e como reflexos surgem apenas imagens de nós dois, resultantes dos goles de saudade que ao serem consumidos da garrafa de whisky, aos poucos me consomem e a fumaça do cigarro ao se separar das cinzas se desfazem, assim como eu, que me desfaço a cada momento na presença da ausência dela.

Vejo que ali atirado no recanto do quarto, ventilado pelas frestas da janela grande de madeira, entre os pés da cama e uma poltrona velha junto a pequena mesa que as vezes me serve de escrivaninha, clareado pela luminosidade estrondosa dos relâmpagos e a chama de uma vela sacolejada pelo vento, estão os fragmentos das lembranças dela condensados nos respingos de suor que impregnaram o lençol da cama na dissolução dos nossos desejos, deixados no dia em que antecede o início da nossa saudade. Aquele dia em que ela arriscou-se, escalou a parede e pulou a janela do meu quarto. E o interessante é que a minha mãe conservou tudo do mesmo jeitinho de antes da minha partida.

O gotejar das biqueiras, se tornam moderados mas da janela observo a rua escura e deserta, o som estrondoso dos relâmpagos e o sacolejar das chamas de uma vela continuam a iluminar. As horas passam e de repente, a claridade das lâmpadas ofusca todas as outras luzes dentro de casa. A eletricidade voltou! E após quase duas horas de chuva o céu estar vazio outra vez, me fazendo perceber que esperar pra amanhã será muito tempo. Então um banho gelado me arranca a ressaca e mesmo já passando das vinte e duas horas a minha ansiedade me carrega para falar com ela e os meus passos apressados perturbam o silêncio da rua que antes era um bosque separando a minha casa da casa dela.

Estou em frente à casa que era dos pais dela. As lâmpadas estão acesas, então ela só pode estar aqui! Ao bater na porta pela terceira vez, o silencio que esbraveja dentro de casa é descontinuado pelo arrastar de chinelos que soa ao sobrepor-se entre a sola do pé e os tijolos largos e compridos que formam o assoalho da casa, logo em seguida continuado pelo ranger da porta grande de madeira que ao abrir-se me deixa frente a frente com os mesmos olhos de antes.

— Você!

Ela exclamou de modo ao não deixar perceptível o que estava a sentir. Não sei se surpresa; medo ou felicidade. Ficamos estáticos. Na sua mão uma fotografia pequena amarelada, vi que era aquela escondida na capa da bíblia. A Princípio não consegui falar nenhuma palavra por mais curta que fosse. Por alguns minutos apenas os nossos olhares gritaram e em seguida os nossos fragmentos foram aos poucos se misturando no calor de um abraço que estava cheio de saudades. Afinal de contas dezoito anos não foram suficientes para apagar as chamas do nosso amor.