AZUL DA COR DO PRESUNTO

E Denise pulou no mar e nunca mais voltou.

Ela partiu.

Partiu.

Partiu no meio uma fruta e me ofereceu.

O sol nem estava tão forte assim, mas, eu espremia um dos olhos, pois o reflexo em seus dentes brancos era suficientemente forte para espelhar a maior estrela que eu já conheci.

Os dentes brancos são as únicas características físicas que importam. De resto, você, que me lê, vai imaginar ela a seu modo.

E ela pode ser mesmo a seu modo.

Negra. Branca. Verde. Azul. Amarela. Vermelha.

Imagine ela de cabelos naturalmente desgrenhados. Ou cuidadosamente penteados. Talvez encaracolados. Ou alisados. Lisos naturalmente e ralo. Ou volumoso e gritante.

Ela ouvia Tim Maia naquele dia e repetia a mesma música como se anunciasse ou pedisse alto para que a ouvissem mesmo calada. Enquanto espremia a laranja no copo, deixava as lágrimas percorrerem o rosto e se misturar ao suco. Não havia som nas lágrimas, mas, o Tim a abraçava enquanto rodava sem ficar tonto naquela vitrola antiga. Em meio a tanta gente na maior cidade da América do Sul, ela se sentia esquecida. No chão da sala, boa parte dos discos de vinil estavam espalhados. Alguns fora da capa. Entre tanta gente na cidade que não a percebia, Gil, Caetano, Dylan, Cash, Bowie, Frusciante, Patti Smith, Debbie Harry, Buckley, Lennon e McCartney, Cohen, Little Richard e Sam Cooke, Kathleen Hanna e Linda Perry, a abraçavam. Forte. Era uma falta de ar de pulmão espremido. E um a um. Cada vinil. Ela partiu.

Viajou sozinha a caminho do litoral e por algumas horas ouviu o vento soprando algo nos ouvidos. Como sempre, imaginou que fosse música e assim, cantarolou pra si, baixinho, "Preciso Me Encontrar", do Cartola. Antes de embarcar naquela carroça coletiva, abandonou num banco de praça o celular e os fones. Agora era apenas ela e o assobio dos ventos. Adormeceu. Despertou com um som familiar. Sentiu por um segundo estar de volta a uma bolsa de água ao ouvir as ondas se chocarem. Havia chegado ao destino e dessa vez, foi a sua maneira. Sem regras. Ainda no ônibus retirou o All Star dos pés e caminhou atravessando o asfalto quente até a beira da areia sentindo-se um salmão na frigideira. A areia igualmente ferva, fazia cócegas nos pés e ela sorria de boca fechada. Os pés ardiam, doíam e queimavam. De tantas dores, ao menos aquela a fazia sorrir. Parou na beira da água e esperou a próxima onda. E esperou. E não veio. O mar recuou. Deu mais alguns passos para a frente. Mais uma vez, o mar se recusou a tocá-la. Será que até o mar a rejeitava? Talvez estivesse dizendo: "Vai-te embora, pois, ainda não é hora, criança".

Deu mais alguns passos e finalmente alcançou o refresco pros pés. Entre um vendedor de queijo-coalho e outro, anoiteceu e parecia ter alugado aquele pedaço de mundo só pra ela. Pediu num quiosque um pouco de vinho e sentou na areia de praia quase deserta. Conversava consigo mesma e em algum ponto se perguntou se Cassia Eller havia sentado naquele mesmo pedaço de areia em algum ponto de sua vida. E se era praia, de certo, Chorão estava por todo canto daquele lugar, digo, escritório, assim como Beth Carvalho, João Paulo, Jair Rodrigues, Almir Guineto, Elis, João Mineiro e Marciano, Maysa, Chico Science, Marcelo Yuka, Tim Maia, Leandro, Claudinho, Cazuza, José Rico, Peu Sousa, Tom Capone, Cherry Taketani, Champignon, Redson Pozzi, Marília Mendonça e tantos outros amigos de sonoros. A música era plural e de cada uma guardava um relicário mental. Denise: Significa “seguidora de Dionísio”, “criadora das águas; o que dá origem à água, o que dá origem ao dia e à noite”.

Em meio ao som das ondas se digladiando, a voz de Nando Reis aquietou o coração. "Azul de Presunto". A música que entre outras coisas remetia á espuma das águas do mar, a abraçou. Naquela manhã ela tinha uma certeza e nela a certeza de que não voltaria pra casa. Mas, tudo muda. Mas, tudo passa. E vai ficar bem. Não tudo. Não sempre. Mas, vai. Comprou o bilhete de ônibus e cantarolou. Dali, ela partiu. Partiu. E nunca mais voltou.

"A realidade é como o ar, é invisível

Impossível de tocar e olhar e provar

A gente apenas sente" - AZUL DE PRESUNTO - NANDO REIS.

Entrecidades Kintsugi
Enviado por Entrecidades Kintsugi em 12/11/2019
Reeditado em 18/11/2021
Código do texto: T6793240
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