Quando o mar e o furacão se beijam.

A montanha era como a minha fortaleza, a areia da praia a minha cama, a floresta o meu sustento e a água do mar era o que lavava não só o meu corpo, mas a minha mente e o meu interior.

O som das ondinhas quebrando quebravam coisas dentro de mim, como mágoas por exemplo, assim como o barulho das árvores chacoalhando com o vento mexiam tudo dentro de mim, como uma vassoura varrendo os estilhaços de algo quebrado, mas só a água do mar para me lavar por completo dos restos de tudo o que era ruim, de tudo o que machucava.

O furacão se alimentava do meu mar para se fortalecer, ele crescia em uma dimensão imensurável distante de onde eu estava, mas ainda assim, poderoso. O meu mar não tinha a água fria, era quente, aconchegante... Ele não aquecia somente o corpo, mas também o interior dos que se encontravam gélidos. Era como um colo de mãe aos que choravam e um cobertor para quem tinha calafrios, mas muitos não valorizam o colo prestado na hora das lágrimas e não zelam para que este mar continue limpo e calmo, muitos não enxergam o real valor das coisas e então se transformam em furacões, se aproveitando do calor da água do meu mar, usando este calor como combustível para então atacar quem o acolheu, porém, não há furacão que toque o mar e permaneça forte, a sua força vai se perdendo quanto mais ele avançar, quando mais ele insistir em ser dominado por sua fúria.

Certo dia, uma tempestade se formou, transformando o meu céu azulado em um céu negro, seguido de trovões que pareciam rasgar o céu como papel e ventos que poderiam me arrastar pelos ares como se eu fosse uma simples folhinha. Eu busquei abrigo na montanha, em uma caverna, fiquei ali naquele lugar gelado tremendo enquanto o mar e o furacão brigavam. O meu mar calmo, agora era inquieto e perigoso, ele recuava para longe de mim cada vez mais, da altura em que eu estava, eu podia ver as inúmeras conchinhas, pedras, caramujos e ouriços que antes eram banhados pela água, agora sem abrigo com o abandono do mar que ia se distanciando cada vez mais. Pensei que talvez o furacão tivesse o vencido e senti medo.

Depois de um tempo ali, fechei os olhos e a imagem do furacão veio na minha mente, tão imenso e lindo, era como se ele estivesse diante de mim e eu fosse forte o suficiente para dançar com ele sem ser destruída. Eu senti o meu corpo pesar, mas ao mesmo tempo era excitante, era diferente do que eu estava habituada, era o oposto da tranquilidade em que eu vivia, talvez viver agora com o furacão e não com o mar, poderia ser bom... Talvez...

Com o furacão eu não sentiria mais a paz do mar, eu sentiria adrenalina, o meu sangue ferveria e ainda que aquilo tudo me machucasse, eu poderia tentar me habituar com a nova realidade. Não deveria ser tão difícil eu me acostumar com aquela presença catastrófica que causava tempestades assustadoras, bastando que eu também me tornasse uma, então eu poderia sorrir em meio a tempestade!

Poderia?

Eu decidi então que não queria mais o mar de volta e parece que ele me entendeu, pois ele sumiu completamente do meu campo de visão e o que restou foi a tempestade tenebrosa. Não sei quanto tempo eu desfrutei do terror de viver naquela tempestade, mas não demorou muito para que meu estomago roncasse, eu começasse a sentir uma pressão dentro da minha cabeça, uma sensação de sufocamento, fadiga, desespero, dor no corpo inteiro e confusão. Meu coração disparou e o ar faltou, em desespero eu corri com a visão turva e quase despenquei do meu abrigo, mas o vento me tacou contra a parede. Com dificuldade voltei para o fundo escuro e frio da caverna, que ecoava os barulhos deprimentes daquela tempestade sem fim. Ali eu não morria, mas também não sentia que vivia. Aquilo me machucava, mas eu queria me convencer de que era bom viver aquela adrenalina, era bom me permitir acreditar que nada estava errado e que tudo ficaria bem. Que tudo ficaria bem...

"Tudo vai ficar bem no final" - eu pensava enquanto sentia como se duas mãos sufocassem o meu pescoço.

Não havia mais barulho das ondinhas quebrando, não havia mais o barulho das árvores chacoalhando, somente havia o barulho de trovões incessantes que faziam doer os meus ouvidos e estrondavam tudo dentro de mim.

"Não, não está tudo bem" - pensei quando comecei a ter um ataque de pânico novamente. O meu ar faltava, eu andava para lá e para cá, meu corpo tremia, as lágrimas eram inevitáveis e o desespero havia me tomado por completo. Eu gritei, mas os trovões não permitiam que nada e ninguém me ouvisse, então me lembrei do meu mar e pensei que ele poderia me lavar, me salvar, me curar.

Tentei caminhar até a saída da caverna com cuidado, mas quando olhei no horizonte o mar retornava com a sua fúria, com ondas gigantescas que cobriram a visão do horizonte e se aproximaram com velocidade.

Então a água engoliu tudo ao redor, inclusive a mim.

A onda foi maior, muito maior que a montanha em que eu estava abrigada, eu fui arrastada pela água e levada para longe, lançada brutalmente para todos os lados, mas eu não estava em desespero, eu estava aliviada em ter a minha essência de volta mostrando que aquele espaço era dela e furacão algum poderia tomar para si!

Depois de um tempo a água se acalmou e lentamente começou a revidar novamente, voltando para a ser tranquila como antes. Eu fiquei na areia jogada, sem forças, angustiada e desgastada pela presença destruidora do furacão que havia acometido a minha vida, porém, ainda assim, com toda a sua fúria o mar revidou ao ataque como fera e mostrou que nada é maior que o amor que ele sente pelos que o possuem.

Quando o sol começou a aparecer no horizonte, alaranjado e quente, aquecendo a água do meu mar mais e mais, galhos e restos de árvores estavam espalhados pela areia e haviam alguns destroços que restaram do furacão soterrados. Eu olhei para aquela bagunça e me senti aliviada, me senti feliz por ter sido salva do furacão, ainda que isso tenha causado destruição, eu estava a salvo agora. Limpei tudo ao redor, juntei galho por galho, tirei destroço por destroço, até que tudo voltou a ficar em paz.

Porém, aquela mágoa... Aquela mágoa restou dentro de mim. A mágoa por se doar sinceramente a algo e receber uma resposta repleta de violência que me feriu por dentro e por fora. Eu não deveria me impressionar, afinal, eu tentei insistir na ideia de que algo que era totalmente incompatível comigo poderia me fazer bem, eu busquei a tranquilidade em um furacão. Era óbvio que daria errado, mas a fantasia de que tudo ia dar certo me fez continuar. Não somos capazes de mudar certas coisas, pois certas coisas são como são e ser um furacão não é um problema, o problema é quando o furacão e o mar resolvem se beijar.

Agora volto a ouvir as ondinhas se quebrando, as árvores chacoalhando e então eu mergulho nas águas quentes para acalmar o meu interior e busco na serenidade a minha essência: o mar.

Thalita Cardoso
Enviado por Thalita Cardoso em 23/11/2019
Reeditado em 23/11/2019
Código do texto: T6801818
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