O casamento

De véu e grinalda, Juliana se aproxima do altar. E o pacote é completo: o pai vem sorridente ao lado, os flashes da equipe de fotógrafos pipocando, escuta-se alguns suspiros de admiração, e já há lagrimas surgindo nos olhos da tia Ruth localizada na terceira coluna de bancos. Sob uma versão solo ao piano de 'La Vie en Rose', sonho de uma precoce Juliana ainda adolescente, o momento se enche de uma beleza algo melancólica. Eu pensava que isso tudo, com essa música, ia ser brega, um treco meio enjoado; não disse nada, é claro. E ainda bem. Que aqui na frente o brega sorri para a gente e vira romantismo puro. Mas culpo esse terno slim fit trancando meus sistemas circulatório e de bom senso.

- Que linda!, balbucia uma lacrimosa senhora na primeira fileira.

Como não haveria de concordar? Linda. Mais do que nunca. Pudesse e eu emolduraria no sempre esse agora só para ter todas as dimensões de uma Juliana vestida como noiva. Toda de branco. Tá aí outra coisa que me pegou desprevenido, o branco, constato enquanto Juliana e pai fazem uma sutil parada para os fotógrafos. O vestido tem pequenos brilhos, como uma constelação de estrelas num impossível céu alvo. E isso me enche de um lirismo adocicado e imprevisto cheio de brilhos, alvuras e impossíveis.

Nós costumávamos brincar que em Paris nada seria impossível e que, é claro, 'nós sempre teremos Paris'. E se lembro disso agora não é só por causa da manteiga derretida que subitamente verte de minha subjetividade e unta todas as ideias. Paris foi sempre nossa piada interna, um link para a sensação de segredo e particularidade.

- Hã? Paris?, sempre que alguém escutava não entendia nada.

Por isso sempre teríamos Paris, porque ninguém associava ao filme, ao avião, ao preto e branco, porque ninguém mais no ensino médio assistia nada que prestasse de verdade. E porque garantíamos um espaço só nosso fora do tempo e do lugar. E se eu dissesse agora, só para testá-la depois de tanto tempo, 'nós sempre teremos Paris'?

Já consigo distinguir o rosto dela por debaixo do véu. Não vejo a pequena cicatriz debaixo do olho direito, que foi o que me chamou a atenção desde o início.

- O que você fez aqui?, perguntou aquele garotinho enquanto tocava o próprio rosto no lugar próximo à cicatriz da garotinha.

- Caí, respondeu ela, na singeleza das garotinhas de 10 anos.

- E doeu?

- Não, minha mãe me deu o Pufi.

Pufi era um ursinho que só fui conhecer anos depois. Era roxo, um pouco menor do que duas mãos, e com a cara que todo urso de pelúcia tem. Ainda assim, na época, ele ainda reinava do alto das prateleiras do quarto de uma adolescente que curtia rock e lia colunas de sexo na internet.

O véu também não me deixa ver o brilho dos olhos. E eu sei: o brilho dos olhos saiu de moda junto do vilão que é só mau e do herói que é só virtude. Mas o que fazer? É terno, é 'La Vie en Rose', é Paris, e é esse monte de lembranças que vem desnorteadas como se bêbadas. Pois na escola havia esses olhos na carteira ao lado e a dona desses olhos que me emprestava a borracha. Eu não queria a borracha, queria mesmo era poder fitar os olhos sob argumento justo. Daí que nossas carteiras eram como dois países em comércio: lápis, canetas, borrachas, clipes, grafites, até uma valorosa canela azul, grossa, e com quatro botões acionando quatro cores diferentes. As relações comerciais progrediram, um claro avanço diplomático, e vieram os bilhetes e os presentinhos.

Um dia, entre a borracha e a capa protetora, um papel. Olho para Juliana que, com aqueles olhos brilhantes, me sugere abrir e olhar melhor. Era um papel dobrado em forma de barco. Com o receio púbere de me mostrar muito feliz, fingi um falso deslumbramento, como se avaliasse uma valorosa obra de arte.

- Ô seu idiota! É pra você abrir o barquinho!, disse ela em simulada falta de paciência, bem baixinho, depois de abaixar a cabeça junto à carteira e um tantinho para o meu lado.

Abri o barquinho. De um lado do mastro de papel, um coraçãozinho; do outro, ‘Juli’.

E o barco ainda navega, hoje, na caixa de lembranças que tenho e da qual nunca falei para ninguém, nem mesmo para Juliana.

Céus. Que seja um cisco, ou uma corrente de ar direta e seca sobre meus olhos. Que seja qualquer coisa que não uma lágrima. Digo para mim mesmo, no silêncio desta consciência, que preciso manter a postura: Juliana está a três passos. Agora já tão próxima que o perfume é um fato inexorável – e me deixa fascinado por descobrir que noivas usam sim perfume.

E depois de passar por mim, sorridente como qualquer noiva feliz, ela segue para o altar, onde seu pai a abandona para os braços do noivo.

Todos sorriem em plena satisfação. Padrinho que sou, tento sorrir mais.

Aí vem o que se sabe, desde a fala de um padre moderno que se quer distante do lenga-lenga, até os votos, a pergunta, o vestir das alianças. Os ‘sins’ são coroados não só com um beijo mas também com uma salva de palmas.

Padrinho que sou, aplaudo ruidosamente.

Luiz é um sujeito legal e merece os sorrisos e aplausos. Meu amigo desde antes de Juliana, por isso quase um irmão. E bem mais corajoso do que eu consegui ser.

Quando me convidou para ser padrinho, ele não disse nada sobre o passado, mas a tensão cresceu. Era evidente que desde o namoro ele sentia que precisava dizer alguma coisa, talvez explicar, se explicar. O olhar denunciava isso, mas também a boa intenção e a paixão genuína que sentia.

- Claro que aceito, eu disse, tentando evitar toda hesitação.

- Grande!, disse ele ao me abraçar.

- Estamos muito, muito felizes!, disse Juliana me abraçando em seguida.

Quando ela saiu de nosso abraço, ela não disse nada mais, mas havia também uma tensão – ou seria só um vento correndo o jardim mal cuidado que sobrou da adolescência? E vi um olhar de quem um dia cansou de esperar, porém ainda lembrava da espera – ou seria só outra erva-daninha nascendo naquele jardim abandonado? Fosse o que fosse, naquele dia eu vi o brilho no olhar.

- Eu é que estou feliz, acreditem!, eu disse como se isso importasse.

Com os olhos marejados, porteiras abertas, rios de um arrependimento doído e egoísta, me mantenho adepto à massa que aplaude e agora dá urros: os recém-casados se viram e saem da igreja pelo grande corredor.

- Foi muito bonito, né?, me abraça aos prantos Dona Rosa, mãe de Luis. Eles merecem!, emenda.

Eu, às lagrimas sofridamente contidas, a abraço e concordo.

Se isso fosse uma história de Nelson Rodrigues, Juliana e eu estaríamos tendo um caso tórrido, com direito a um episódio na antessala da igreja; se não com ela, com a irmã dela, um estratagema para chegar até ela. Ou até mesmo com Luiz. Mas isso aqui não é Nelson Rodrigues, e, sinceramente, não ajudaria caso fosse.

Por isso vou ficando para trás da multidão, enquanto lembro, desordenado, de tudo. Até que as memórias param novamente na caixa de lembranças secretas, um pequeno mausoléu daquela grande promessa não realizada. E recupero uma vez mais o barquinho de papel, a tinta vermelho-cereja com a qual se desenhou o coração e se escreveu o nome. E lembro que um dia a tinta tinha também o cheiro de cereja. E o pior: lembro até do cheiro que, por ser químico, eu achei que duraria para sempre.

Quase esquecido, alguém me dá uns tapinhas no ombro como se me lembrasse que ainda havia a recepção.

E eu, padrinho que sou, não poderei faltar.