Os olhos da minha mãe
 
Há dezoito anos tornara-me padrinho de batismo de uma pequenina e frágil recém-nascida, Lucinda era o seu nome.
Enquanto a minha afilhada está a iniciar o seu curso de medicina, deixemos aqui grafadas algumas palavras pertencentes a um tempo que fincou em um distante passado; tais palavras se fazem necessárias, pois servem para sustentar as razões das consequências que hoje padeço.
Quando tínhamos sete anos de idade, o pai de Lucinda — que naturalmente, ainda não o era — e eu, nos tornamos colegas das primeiras letras; estivemos juntos por três anos consecutivos; depois desse tempo, nos separamos; ele continuou na mesma escola, e eu me mudei, inclusive de cidade. Depois desse tempo, passados trinta anos, e há vinte anos, nos reencontramos. Nesse momento, ele estava casado há sete anos.
Tornara-se marceneiro de mãos cheias, mas, vazia estava a sua casa, uma vez que, filhos não concebera a sua esposa, muito embora, para tê-los, a medir esforços não estavam.
Em pouco tempo, estreitamos o nosso convívio, meu ex-coleguinha de escola e eu; pude então, acompanhar de perto o grande desejo e esforço do casal para se tornar pais. Depois de muito empenho, uma sentença médica, de vez, frustrou-lhes a esperança, pois, à esposa, um médico disse isto, de forma intempestiva e inconsequente:
— A senhora jamais poderá se tornar mãe, pois, ou os espermatozoidesou do teu marido têm alguma limitação, ou os teus óvulos são definitivamente, incapazes de recebê-los!
Ledo engano fora tal afirmação, pois, tantas mães há, sem nunca ter parido... Essas foram as minhas palavras diante do desânimo daquele casal amigo.
Para grande alegria de todos, depois que a minha cunhadinha — esse era o termo que eu usava para me referir, ou para me dirigir à esposa do meu amigo — considerou aquelas minhas palavras, nada demorou para que ela concebesse; concebesse a ideia da adoção de uma criança; para tal concepção, houve também, uma razoável espera, tempo suficiente para que a futura mamãe, abortasse de vez aquele desejo de gerar o seu próprio filho.
Dúvidas não houve, ouviu-se o choro de uma criança recém-nascida, concebida através de um ventre fértil que pelo funesto vaticínio de um incauto facultativo, foi agora desfeito. Pelo efeito daquela espera, a mãe de Lucinda entendeu que se deseja algo, para que isso ocorra, no tempo que tudo pensa, pensar é inútil...
Por volta dos seus dois anos idade, com maior nitidez, destacaram-se a iluminar o lindíssimo rosto daquela criancinha, os seus belíssimos olhos verdes.
Se ao tempo pretérito voltamos, agora, ao presente retornemos:
Nos dias de hoje, minha afilhada tem dezoito anos de idade; os completou em setembro próximo passado. A cada ano desde que nascera, com todo carinho, dava-lhe no mínimo, três presentes em três momentos especiais e distintos, quais sejam no dia do seu aniversário, no dia das crianças, e no dia de natal.
Dias antes do último natal próximo passado, meu compadre Olimar — este é o nome do pai de Lucinda — disse-me:
Tenciono dar à minha filha e afilhada sua, neste Natal, um presente de grande valor, para tanto, não disponho de verba suficiente; penso que você poderá ma emprestar.
De pronto, respondi-lhe:
Para este fim, dou-lhe o quanto você precisar; e a mim nada ficará a dever; também eu, no dia de Natal, em sua casa, estarei presente, a levar o meu presente a ela.
Deu-se aquela noite de natal — a do ano próximo passado — e lá, não fosse um imprevisto que nos sucedeu, vistos seríamos, minha esposa e eu, entre muitos parentes de Lucinda: avós de um lado e outro, tias e tios de gerações diferentes, primos de vários graus, enfim, por conta do bom velhinho, a casa tornara-se cheia.
Só ao primeiro terceiro dia deste ano, o que está em curso, pude me encontrar com a minha afilhada. E o fiz por desejar entregar, pessoalmente, aquele presente àquela menina de olhos verdes que por tanto gostar de se ver, se visse nesta tela, alguém a descrever-lhe a imagem, mais vaidosa ficaria... 
A ser assim, vejamo-la:
Lucinda acabara de completar dezoito anos de idade — dito já fora — todos os dias de vida dessa moça, foram sempre cultivados sem estremas, sob o carinho e desvelo dos pais, do pai, especialmente. É uma menina meiga, inteligente, e mais, mais ainda estudiosa, contudo, não menos vaidosa. Quanto ao seu olhar, ou antes, quanto aos seus olhos, neles sempre vi isto: são olhos capazes de encantar o olhar de quem os vê, para em seguida, atrai-lo para dentro de si, e sem nenhuma excitação, desbotá-los, e por fim, pôr fim às suas esperanças dele... Talvez, para ser mais claro, ou melhor descrever esses lindos olhos, deveria usar outras palavras àquela descrição, e o farei, se mas emprestar, dentre as suas, o meu amigo Joaquim Maria:
Seus olhos “traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.” *
Naquele dia — o terceiro de janeiro deste ano — fui recebido pela minha afilhada e seus pais com muito desvelo; tal recepção saíra do seu habitual, pois na maioria das vezes, que lá eu comparecia, a minha presença suscitava um pálido acolhimento, quando não, ou até com frequência, a minha afilhada a mim se mostrava muito reticente, e não por poucas vezes, mostrava-se arredia, tão logo eu adentrava em sua casa.
Entreguei-lhe o presente; tratava-se esse de um smartfone — o mais novo lançado, se velho e desusado não se tornaram na semana passada, os pares seus que lá na loja deixei — em seguida, lhe perguntei:
Que presente teu pai te deu?
— Tu sabes, meu pai é aquele antiquado de sempre, para não dizer imbecil, pois, na noite de Natal, disse-me:
— Pelos teu lindos olhos verdes, Papai Noel pediu para eu te entregar este par de brincos de esmeralda.
Que bom gosto tivera eles — o Papai Noel pela escolha, e teu pai por atender o seu pedido dele.
Nosso encontro, sob um clima afável continuou, quando Lucinda, sem que eu o esperasse, disse-me:
— Lembrou-me, neste momento, não esquecer disto:  
— Há algum tempo, afirmaste possuir em tua carteira, um retrato, no qual se vê tu e a tua mãe quando tinhas apenas oito anos de idade; a ser assim, peço-te, mostra-mo, neste instante.
Sem hesitar, meti a mão na carteira, retirei o tal retrato, e lho entreguei.
A menina tão logo o recebeu, por longo tempo descansou o seu doce olhar sobre aquela velha fotografia, em seguida, a entregou às mãos do seu pai, mas, não sem antes lhe dizer isto:
— Pai! Vê com atenção este retrato! Pois nele se revela a verdade...
O pai, sem se ater a nenhum translação, sem mais cuidado, por uma fração de segundo, o observou, e logo, se dispôs a mo entregar; por estar de permeio entre nós, a menina, mais uma vez, ela tomou em suas mãos, essa foto, tal qual fizera antes; agora por mais tempo, descansou sobre essa antiga foto, os seus lindos olhos verdes, para em seguida, entregá-la à sua mãe. Essa ao recebê-la, tal qual fizera a filha, mostrou-se atenta ao fixar os seus olhos sobre ela; feito isso, sem conseguir dissimular um enigmático embaraço, fez menção de ma entregar; depois de impedir que isso se desse, pela terceira vez, a jovem Lucinda a tomou em suas mãos, e voltou os seus olhos, agora em lágrimas, à sua mãe, e disse:
— Mãe! Vê os lindos olhos verdes da minha avó!
 
 
* - Aquelas palavras entre aspas, são do meu queridíssimo amigo Joaquim Maria Machado de Assis
 















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Eugene Garrett
Enviado por Eugene Garrett em 07/01/2020
Reeditado em 09/01/2020
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