O dia que a morte se apaixonou

O copo está cheio, mas ela está vazia. Mas não vazia, tipo... Vazia. Por que o vazio dela pesa uma tonelada, o que é louco, ela pensa. E ela só pensa mesmo, ela pensa. Ela diz que só se permite pensar agora. Os sentimentos, ela pensa, eles se foram. Seu coração amargurado deixou uma trilha de corações amargurados em seu caminho. Quebrados. Ela diz que não sente a amargura, mas lutar contra a amargura lhe deixa amargurada.

Sabe o que não lhe parece justo? Todos eles eventualmente se recuperam. Os corações, ela quer dizer.

O dela não.

Seu nome é Morte e quando ela lhe faz justiça (ao nome), embora parte de si, justamente a parte que acompanha o alvo ao Aqueronte, morra junto, ela sente prazer. Afinal, eis seu papel no mundo. Mas aquela vez... Ela se lembrava ainda, até.

Seu corpo era magro, os ossos apontavam. Ela espreitava dia após dia, se aproximando dele, enquanto os sintomas de sua chegada se evidenciavam. Mesmo que ela não tenha se aproximado para mata-lo, ela não podia evitar. Ela achava bonito o quanto ele era carinhoso... Ela nunca havia tido interesse por sentimentos, até agora. Os ursos em sua cama, alinhados de forma quase infantil, mesmo que ele estivesse no ensino médio já, sua mãe e sua irmã e todo aquele cuidado... Ele era um menino especial, um bom menino, o que a fazia todo dia não conseguir se controlar e se aproximar um pouco mais. O garoto era como um ímã para ela.

Mas ele já não estava tão vivo mais, depois de meses em que era perseguido. Os efeitos da atual quimioterapia não o deixavam comer e seus ossos já eram muito mais evidentes, sua pele branca era muito mais branca. Ela estava perto demais, mas não podia evitar. Estava apaixonada, porém jamais admitiria. Ela era proibida de se apaixonar por humanos, ainda mais um humano tão... Humano. Vivo, embora ela já roçasse os dedos em seu cabelo e ele pudesse senti-la, àquela altura. Ele começava a conversar com ela.

- Sabe, eu vejo você. – Sua voz era fraca, quase um sussurro, como um fio de esperança batendo aos seus ouvidos. Ela finalmente, saindo das sombras, se sentou próximo, na cama dele. Ela olhou para baixo, tímida, mas logo ao lembrar de sua posição, ergueu-se altivamente.

- E o que você vê, quando me vê?

- Beleza. Como há em tudo.

- Eu sou o fim de tudo, garoto.

Ele sorriu, tossindo logo depois. Sentiu falta de ar, mas seu rosto não possuía mais cor para perder. Mesmo recuperando seu fôlego, ele ainda lhe parecia tão doce... Ela esperou pacientemente, enquanto ele se recompunha. Ela sabia que se o tocasse, mesmo de leve como ansiava, lhe causaria mais dano.

- Você ainda não consegue entender...

Ela, disfarçando o olhar confuso, lhe perguntou em tom arrogante:

- Como ousa chamar-me de ignorante?

- “A ignorância é uma benção”, dizemos nós, os humanos. – Ele pausou. – De fato.

Ficaram em silêncio, a morte tentando acessar a mente do garoto e o garoto com a mente silenciosa. Era um garoto peculiar, ela pensou.

- O que você carrega é o recomeço. O movimento, a transformação. Você não tira a vida, por que sem a vida você não pode existir. Veja. – Ele disse, lhe apontando para a janela de fora. Uma luz amarela estava lá. Engraçado, ela não havia visto essa luz antes.

Devagar a luz foi tomando forma de gente, era uma garota dourada. Ela estava escorada nos cotovelos, no batente da janela. Seu rosto era sorridente. O som do seu coração se fazia absurdamente alto para os três.

- Vocês caminham juntas. – Ele concluía. Oh, agora se tornava claro para ela. – Nós sempre brincamos juntos nos meus sonhos e certo dia, ela me disse que você estava vindo e que ela viria logo atrás. Por que depois que você me tomar, eu ainda ficarei aqui, em cada parte minha que se integrar ao solo, alimentando plantas e animais, como o ciclo natural, que deve ser. Ou em cada parte de mim que ainda funcionar dentro de quem precisa mais do que eu: seja meu coração bombeando o sangue alheio ou meus olhos levando luz a outra alma. Eu serei o que sempre fui, apenas parte. E ela me conduzirá a esta parte da dança.

E então, ela não pôde se conter, ali mesmo com Vida ainda observando sorridente da janela, tomando o fôlego do rapaz, ela o beijou. Devagar, por que ela queria prolongar este momento, suavemente, para que doesse menos. Os lábios dele a acolheram afavelmente, enquanto reverberava as últimas batidas do seu coração e lá fora, as pessoas já começavam a ficar agitadas, correndo para o quarto para evitar o inevitável.

Ela pegou sua mão e o levou, sorridente, ao Aqueronte enquanto ele contava a ela as maravilhas de se estar vivo e a felicidade de sentir-se completo ao unir-se ao universo de fato, agora. Ela ficava ainda mais inebriada. E como era macia aquela mão...

Mas ela só poderia ir até ali, a margem do rio e quando tentou atravessar, Zeus em sua própria figura lhe ordenou que voltasse.

Desde então Morte vive de coração partido no mundo dos humanos, servindo-se de suas invenções, por que um humano lhe mostrou o amor e por que um humano lhe levou embora este mesmo amor. Vive de cara cheia nos bares e terraços de festas, tragando cigarros e as vezes um baseado. Morte rasgou em sua própria pele a data em que o coração que nem sabia que tinha foi partido e depois, quando se tornou moda no mundo dos homens, talhou em si mesma várias coisas sem sentido, que lhe lembravam que ela mesma não fazia mais sentido para ela.

Morte não entendeu que amar é deixar vir e ir docemente, por que se você prende, mesmo que seja a ideia do ser amado, não é amor. É apego: o que não tem nada a ver com o amor.

Se esqueceu da luz que seu humano lhe lançou um dia e sua amargura lhe fez quebrar cada coração humano que ousasse lhe lembrar o que era o amor, por que o que conhecia por amor lhe foi terrível. Aprendeu que se tocasse levemente o coração humano poderia quebra-lo em mil pedacinhos.

Mas eles eventualmente se recuperam e tornam a amar, custe o tempo que custar.