Ausência de primavera....

Ele era assim,desligado das coisas do lar.O seu deleite era a Física,o cosmos,o infinito,o mistério.Não era muito afeito às obviedades.Nem ao mundinho prosaico,com suas manifestações cheias de vida.Prazer?Só no que era ainda indecifrável,o que estava por vir,o que ainda era desafiador.Diante de um enigma,seus olhos brilhavam, e o tempo parava pra ele.O "Decifra-me ou te devoro" estava em seu DNA.E o seu tempo era todo para decifrar o imponderável.Quanta consumição!

Qualquer outra coisa tornava-se menor.Qualquer urgência podia esperar.Mas a sensação que estava prestes a ser devorado o apavorava e o jeito era decifrar o enigma.E sempre conseguia,se não para os outros,pelo menos para ele mesmo ,o êxito acontecia.E comemorava! Virava um menino,falava uma linguagem truncada,científica com quem estava por perto,para o seu amor ocasional.Fui um desses amores.Pelo menos me senti assim cada vez que o brilho das estrelas lhe iluminava o olhar (o que tinha de mais sedutor).Aí a sua libido aflorava.

Na sua mente privilegiada para as questões teórico-científicas,o tesão só se dava quando algo além do comum,do factível acontecia.Louco isso?Sim! Hoje eu sei! Mas lá,quando ainda fazia parte do seu universo particular,ficava torcendo para que um frenesi o acometesse.Me acercava dele,fazia um carinho e ficava à espreita.No trabalho diante do computador,o silêncio era total.Sua atenção era de um felino aguardando a presa sair da toca.Acuidade e tensão a um só tempo.De repente....vinha uma alegria incomum.E o carinho,a que não era tão afeito assim,transbordava.

E a magia acontecia!Era o amante latino,o meu Antônio Banderas,ou voltando um pouco mais no tempo,o meu Omar Sharif com que sempre teve uma semelhança física muito grande.Ah e o mundo desaparecia pra mim em seus braços.Sei que eu não era eu mesma pra ele.De repente sua mente extemporânea me transformava em estrelas de cinema,em mulheres revolucionárias,até em ex-amores.Mas....eu me deliciava com isso e tentava assimilar todo o erotismo do momento.

Entre um "Decifra.me ou te devoro" e outro,fomos compondo a nossa história,que num dado momento,acreditei que seria definitiva,O amor tao esperado da maturidade.Fui me permitindo fazer do seu cantinho o meu também.Um arranjo aqui,outra mudança ali.Arrumação nos armários,nas gavetas.De vez em quando tropeçava no passado(dele!) e ,de soslaio,reconhecia o seu sorriso em fotografias já amareladas, o mesmo sorriso que atravessou décadas e me conquistou no primeiro encontro.

Ele sempre sorria duplamente,com os lábios e com os olhos-estelares.E nas fotos dos tempos idos,ainda que fortuitamente,sua marca estava lá!Tive várias oportunidades,no meu trabalho de pretensa nova dona da casa,de olhar atentamente o álbum do passado.Nunca me atrevi.Respeito?Medo?Ciúme?Acho que tudo isso misturado.

E assim tentei me adonar sutilmente de uma casa que desejei transformar em lar.Uma casa de um homem solitário nem sempre parece um.Mas a sutileza foi tanta que acho que ele demorou a entender.Por lá não havia flores,nem cores,nem brilho.O que tinha de vida,vinha de umas lindas e sensuais peças em madeira compradas na Bahia.No mais,ausência de ternura em todos os cantos.Sugeri alguns vasos de plantas.Resistência.Então comprei dois suportes ,duas jardineiras e algumas mudinhas de flores da estação:miosótis,beijinhos dobrados e....cebolinhas! Não percebi nenhum entusiamo dele no momento.mas como foi um presente meu,acabou aceitando e me ajudou a plantar.

Estratégia feminina?Pode ser.Queria que minha presença se revelasse em cada florzinha aberta ao amanhecer.Afinal morávamos em casas diferentes.E deu certo por um bom tempo.Meu Sharif passou a ter gosto com as plantinhas.Sempre me dava notícias delas.Mandava vídeos.Comprou outros vasos,cuidou da jardineira da janela da sala....

E assim, a cada vez que me falava com alegria de uma flor que acabara de abrir ou me dava notícias das cebolinhas que passou a usar no preparo da comida,eu pensava:Ele decifrou algo,que pena que não estou por perto para aproveitar essa explosão de libido.

Até que....

Entre idas e vindas de nós dois,as cores foram perdendo os tons avermelhados,amarelos,róseos e tudo foi ficando muito cinza.A verdade que é transparente como o dia,anoiteceu.

Hoje não sou eu quem arruma a casa,ajeita a cama,cuida das flores e faz a mesa.Até a decoração que foi feita enquanto ele era o meu Banderas,não sou eu que usufruo dela.

A vida tem desses desencontros.O meu ex-amor preferiu ser devorado de vez.Lamento por nós dois.

amarilia
Enviado por amarilia em 06/03/2020
Reeditado em 07/03/2020
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