Crônica de Um Amor Infinito Enquanto Durou
 
     Era privilegiada por morar num dos dois únicos prédios da rua que não tinham como vista um outro prédio em frente a lhe bloquear a visão nem se deparar com janelas e inevitáveis invasões de privacidade, ou a lhe ocultar os muitos céus de diferentes dias. Como morava próximo ao mar, sabia quando uma chuva se aproximava apenas olhando para o alto a conferir o movimento das gaivotas migrando para outro lugar. Também podia contemplar o amanhecer e o entardecer com seus muitos tons de cores e, se projetasse o corpo um pouco para fora da janela, podia observar as diferentes luas de cada noite, quando estavam visíveis. Não era um luxo, era mesmo um privilégio dentro de uma cidade grande e em um bairro populoso. Por isso costumava acordar cedo e apreciar cada espetáculo diário, mesmo quando o dia estava cinzento. Quando se animava, gostava de fazer caminhadas no parque que norteava a praia e com indizível prazer aproveitava os muitos tons de verde e variedades das árvores do parque junto a vastidão do mar. Sentar num dos bancos de concreto após o exercício também era uma rotina, desfrutando de uma água de coco antes de voltar para casa.
     Se conheceram assim, numa das muitas caminhadas no parque. Os horários eram coincidentes, e a parada para o descanso também. Das conversas triviais sobre o clima ou as horas nasceu um compromisso, e quando um dos dois faltava era questionado no próximo encontro: “Perdeu a hora ontem? Senti sua falta na parada para a água de coco”. E uma espécie de cumplicidade e amizade começou a surgir entre ambos. Até já combinavam os horários e metas a serem cumpridas na atividade física. E essa amizade não demorou a se firmar e se estender a outros assuntos. Agora já falavam sobre filmes em cartaz nos cinemas do bairro, da cafeteria gourmet recentemente inaugurada, da sorveteria de sabores exóticos, discutiam novos assuntos dos noticiários e a possibilidade de se verem em novos eventos, diferentes das caminhadas.
     Não era um homem comumente enquadrado nos ditos padrões de beleza, mas possuía o charme da meia idade, além de uma cultura admirável. E isso era superior a tudo, pois as conversas eram longas e saudáveis. A amizade foi se transformando em algo cada vez maior, até o dia do beijo roubado por ele na hora de se despedirem depois de um café. Um gesto inesperado que a deixou surpresa e pensando nisso durante o resto do dia.
     Resolveu não ir caminhar na manhã seguinte, nem nas outras que vieram. Estava confusa. Mal tinha acabado um casamento e temia se envolver numa nova relação. Ele respeitou seu tempo o quanto pode, até uma tarde em que o telefone tocou e era ele. Bastou ouvir o “alô” e começou a recitar um poema que escreveu, declarando estar apaixonado. Ela ouviu tudo em silêncio e após uma breve pausa lhe disse que tinha achado lindo, que se sentia lisonjeada, mas que não era algo possível de acontecer entre os dois. Ele se desculpou pelo incômodo, e terminaram a conversa amigavelmente.
     Mudou o trajeto da caminhada tentando não o encontrar, enquanto o tal telefonema com uma poesia de amor não lhe saia da mente. Pensava que alguém que se abriu tão plenamente, se tornando tão disponível colocando seus sentimentos expostos, merecia uma oportunidade de melhor conhecimento. Depois de algumas semanas, inventando um motivo qualquer, foi ela que o procurou. Combinaram encontrar-se para um almoço, quando então colocaram todas as suas verdades individuais à mostra. Nada além disso. Mas combinaram um novo encontro e, após o terceiro, já tinham uma história de amor iniciada.
     E por anos viveram esse amor intensamente. A paixão era imensa, os corpos se somavam, a união era perfeita, embora não compartilhassem a mesma casa, pois acordaram que seria a melhor maneira por causa dos seus filhos, enquanto ainda dependentes. Falavam-se por telefone a toda hora, mesmo quando se tinham visto durante o dia, mesmo depois do final de semana compartilhado, mesmo depois de voltarem de uma viagem em que ficaram plenamente juntos. Falavam-se porque não conseguiam ficar distantes nem um minuto. Falavam-se só por falar, para se sentirem próximos. Era a perfeição da realidade de um amor maduro e verdadeiro.
    Mas também existia o tempo com suas realidades verdadeiras.
  Ele, inseguro com a solidão dos seus dias, acreditava que era necessário viverem juntos. Enquanto ela, que tinha saído magoada com a sua experiência de vida em comum, recusava. E o trabalho, a rotina com os filhos e suas necessidades mudaram a relação tão perfeita de antes. Eram fiéis. Confiavam um no outro, ainda se amavam, mas os desencontros da vida sinalizavam que havia a possibilidade do fim. Os filhos dela já estavam crescidos, os dele já tinham tocado suas vidas em frente e ele não concebia o porquê de a distância ainda existir. Ela, por sua vez, acreditava na autonomia, amava o seu trabalho, ter seu próprio espaço, sua liberdade e gostava dos seus momentos sozinha, quando achava que eram necessários, o que um casamento impediria.
     O tempo foi acumulando frustrações, indecisões e a rotina dos encontros apenas para almoços semanais ou dos finais de semana passados juntos fez com que percebessem que algo havia mudado. Depois de anos juntos, num final de semana em que os dois ficaram impedidos de se encontrar, o telefone tocou. “Oi, amor” - ela o saudou como sempre. Mas do outro lado da linha ela não ouviu o “Oi, meu amorzinho”, nem “Como foi o seu dia”? Nem uma poesia de amor ou saudade. Apenas uma seca informação da decisão tomada sobre o final do romance. Até mesmo da amizade.
     Vida. Anos. Tempo. Tempo que pode ser um poderoso aliado ou um terrível destruidor quando, implacável, muda tudo: planos, sonhos, vida, e que até mesmo detém o poder de findar uma linda e perfeita história de amor.
     Tempo, tempo...
Marise Castro
Enviado por Marise Castro em 06/04/2020
Reeditado em 21/07/2020
Código do texto: T6908016
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