PÁSSAROS Capítulo I_ Joões

I _JOÕES_

Eu lembro, quando eu ainda era criança, que tinha uma coisa que me fazia feliz e que era completamente oposto dos meninos da rua que passavam o dia jogando bola ou brincando de luta, eu gostava mesmo era de ficar observando o que ninguém prestava atenção. Seja a folha arrancada pelo vento da árvore e se movimento até cair ou a borboleta que dançava livremente pelo jardim. Os pássaros que pareciam valsar no céu, o cheiro do ar. Eu sempre gostei de tudo que me trouxesse a ideia de liberdade. Eu podia passar horas no quintal de casa, sentado na grama, observando tudo! Desde as formigas que uma a uma seguiam carregando coisas que pra nós podiam ser leves, mas pesadas pra elas, desde o deslocar de cada nuvem. Por um tempo acharam que eu era lerdo demais porque eu simplesmente não conseguia prestar atenção no que não era do meu interesse.

Um dia, eu tinha lá meus oito anos, eu reparei que a Andreia, minha professora,” tia Andréia como ela mesma disse que gostava de ser chamada”, reparei que ela havia trocado os sapatos. Sim, eu lembro que todos os dias ela sempre usava um sapato preto de salto baixo e do nada, ela surgiu com um sapato verde e o salto era maior e mais fino.

- Tia Andreia, o que aconteceu com seu sapato preto? - eu disse isso sentado na minha carteira com o dedo levantado.

Ela esbugalhou os olhos, certamente pela surpresa de ter nos perguntando se alguém tinha uma dúvida sobre a lição.

- Meu sapato está em casa, João. – ela disse já se aproximando da minha carteira – Hoje eu troquei de sapatos porque é um dia muito especial pra mim, é meu aniversário!

- Então aniversário é dia de trocar de sapatos? – com ela mais perto de mim eu reparei em outros detalhes. O batom rosa claro, os brincos de flores, a corrente dourada com um pingente de uma bailarina.

- Não, mas é um dia que olhamos mais pra nós e eu percebi que estava usando os mesmos sapatos há anos. – ela me fez um carinho no rosto com sua mão suave e macia e suas unhas pintadas com um esmalte rosa, da mesma cor do batom.

São várias lembranças que tenho do tempo de criança, mas elas acabam virando uma só quando penso no sujeito de cada uma delas: a figura feminina. Nunca esqueço os detalhes da minha professora, que despertava meu interesse. Seu cabelo, suas unhas, seu perfume suave, sua delicadeza. Eu não sabia, mas eu queria, no fundo, ser ela!

(...)

Eu vi aquele peixe de debatendo no tanque, a feira era uma coisa de louco. Muita gente, muita coisa, gente gritando, todo tipo de cheiro, mas não sei porque, eu lembro do peixe. Meu pai gostava de peixe fresco e eu ia com ele a feira toda semana. Eu tinha oito anos e não sei porque nesse dia e não sei porque essa lembrança, mas eu lembro do peixe se debatendo no tanque e eu pensei que ele devia ser muito feliz quando morava na casa dele, que devia ser um rio qualquer. Ele devia ser livre e devia gostar de brincar com seus outros amigos peixes, até que um dia ele viu uma minhoca se debatendo dentro d’agua e como é muito faminto, foi comer. E então sentiu o anzol lhe perfurando o céu da boca e, até se debateu e pensou consigo mesmo que havia caído numa armadilha, mas já era tarde demais, agora já estava aqui, num tanque com uma placa escrita “peixe vivo” e esperando pra ser servido na mesa de alguém. E esse alguém era meu pai. O homem tratou o peixe, lhe abriu num corte certo e lhe tirou todas as coisas que haviam dentro e lhe tirou as escamas. Engraçado, ele não fechou os olhos. Como alguém te mata, te abre e arranca tudo que você tem por dentro e você fica de olhos abertos? Será que os peixes não tem sentimentos?

- João, na próxima semana quem vem comprar o peixe é você. – disse meu pai enquanto apenas andava a minha frente.

Ele nunca parava pra falar comigo, estava sempre fazendo alguma coisa. Na verdade, até hoje eu não sei nem a cor dos olhos dele. Os do peixe eram cinzas, eu lembro, mas do meu pai não. Ele nunca olhou nos meus olhos. Militar, duro, não era bom de demonstrar sentimentos. Mas sei lá, minha mãe dizia que ele nos amava da sua maneira.

Enfim, na próxima semana fui eu quem fui comprar o peixe. Nesse dia já era outro peixe mas como mesmo olhar do outro. Deviam ser irmãos ou parentes. Dessa vez eu observei o seu Antônio fazendo tudo, abrindo, tirando tudo de dentro, arrancando as escamas e embalando. E eu observei tudo isso com um certo remorso. Pensei na liberdade que foi tirada daquele peixe, de como ele devia ser feliz sendo apenas um peixe. Mas também lembrei que toda sexta comíamos peixe lá em casa e que se não fosse ele seria outro e fui entendendo que a lei da sobrevivência é isso. O que determina que você é, não é o que você faz, mas o que você precisa fazer. Eu precisei parar de me importar com a liberdade dos peixes.

- João já tá até comprando o peixe sozinho, daqui a pouco já tá um homem, vai casar e ter seus filhos e comprar o peixe pra sua própria casa, não é João? -quem disse isso foi minha mãe, pra vizinha, assim que eu cheguei com o peixe em casa.

- Calma Diná, ele ainda é muito novo pra já pensar nisso! – quem disso foi dona Zefa, a vizinha.

- É de menino que se torce o pepino, Zefa!- minha mãe e suas frases que não entendo.

São várias as lembranças que tenho do tempo de criança, mas em todas sempre há um mesmo elo: tudo que faz parte de mim já foi decidido por alguém. Eu nasci pra ser aquilo que esperavam que eu fosse.

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 11/05/2020
Código do texto: T6944014
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