PÁSSAROS Capítulo II_Acquarius

-Me chama de Joanne, eu prefiro assim! – foi o que eu disse pro boy que perguntou o meu nome na fila do supermercado. Engraçado como instigamos a curiosidade daqueles que fingem não se importar com a gente, não é?

Estou buscando algumas mudanças e uma delas é falar sempre em primeira pessoa. Engraçado com EU instigo a curiosidade daqueles que fingem não se importar COMIGO e EU tenho consciência de que sou o desconhecido, o infinito, as perguntas que não quer calar, o terror dos extremamente religiosos e da família tradicional brasileira. Alguns podem até dizer que sou desconstruído por usar roupas multicolores, minhas unhas pintadas, meu delineador, cílios postiços e salto. Falei das unhas? Agora elas estão pintadas de preto.

- Por que você pinta suas unhas? - foi o que me perguntou uma senhora que sentou a meu lado no ônibus uma vez. – Porque elas ainda não se pintam sozinhas? – respondi perguntando e soltando um risinho pra não parecer arrogante. Se fui, paciência.

Às vezes cansa. As pessoas querem que eu me explique e nem sempre quero me explicar, o porquê de eu ser que eu sou, o porquê disso, o porquê daquilo. Por mais que seja um saco, a cada dia tenho mais e mais consciência de que toda vez que alguém me vê, confirma a minha existência no mundo. Pensa só como tem tanta gente invisível? Quantas pessoas passa por você pela rua e simplesmente você nem nota ou nem lembra dias depois? Eu sou do tipo que sou lembrada, sou notada. Gosto disso! Mas ainda me olham como se tudo que eu sou, tivesse sido formado da noite pro dia. Sequer sabem que toda sutileza que fez parte da minha vida desde a infância. Desde imaginar o abstrato das nuvens até a minha primeira professora, que tudo isso me formou, lentamente.

Comecei tudo isso falando do supermercado, mas nem estou mais nele. Já estou indo em direção ao metrô. Comecei o dia com uma meditação básica pra que eu possa mentir pra mim que sou equilibrada e passar o dia com isso na cabeça. Toda vez que tenho uma atitude extrema eu lembro que meditei e por isso, sou uma pessoa que está buscando a evolução, mesmo diante de tanta regressão. Depois de meditar, tomei meu banho e coloquei qualquer roupa sabendo que qualquer roupa me deixa maravilhosa e sigo pro trampo. Alguém passou num carro e gritou “viado”. Agradeço o elogio e sigo.

Um dia, não lembro exatamente qual, eu escovava os dentes e me olhava no espelho como de costume e foi nesse dia que ela apareceu. A razão da minha existência me olhou nos olhos e me perguntou quem ela era pra mim. Eu sei, você soluçou agora. Eu também solucei. É, essa pergunta é uma leve facada mesmo. E então aquele dia foi atípico. Foi um dia que eu não fui produtiva, nem interativa, nem nada. Eu só consegui cavar um poço, pegar minha manta e ficar lá, tomando um chá e fumando um cigarro. Eu constatei que não se vive quando se tenta impressionar alguém. Como viver em função dos outros sendo que todo esse jogo aqui é com nós mesmos? É tudo pra vencer etapas num jogo de descoberta de si. Filosofei agora pra chegar onde eu queria: a ida pro trampo!

Eu danço na rua, danço pra mim e danço pros outros. Já me notavam mesmo e o que eu fiz foi apenas ganhar uma graninha em cima disso. Além de dançar em espaços públicos e passar o chapéu, eu vendo meus artesanatos, jogo cartas, sou atriz, cantora, lavo, passo e cozinho, aliás, faço mais coisas que a Barbie. Mas eu sou independente, ganho meu dinheiro com aquilo que sei fazer. Eu sei, independência é algo muito subliminar porque se dependo do dinheiro do outro, minha independência cai por terra. Mas a independência que falo é a independência do meu julgamento, ou seja, não dependo mais da minha consciência me julgando pra que eu possa ou não fazer algo. Eu simplesmente faço e consigo, não sei como, fazer com que meus dias sejam diferentes um do outro. Um dia você vai saber do que estou falando. Acho que a única rotina que sigo é ir ao “Acquarius” nas quintas. Toca umas músicas bem anos 80/90 que amo. Ah, nesse dia eu me entrego mesmo ao saudosismo e ao fundo do poço, ainda mais quando toca meu hino “And I say, hey, yeah, yeah-eah Hey, yeah, yeah I said, hey! What's goin' on?”. Por sinal esse dia é hoje!

Escolhi o metrô central, não é sempre que venho, gosto de frequentar outros lugares mas acho que hoje é um dia bom, não sei, eu sinto! JBL ligada, hora de começar. Escolhi “They Long To Be Close To You”, conhece? Eu amo! Ela começa com “Por que os pássaros aparecem de repente toda vez que você está perto?” Eu danço e as pessoas passam bem no estilo “tô nem aí pra essa bicha”. Faz parte. As pessoas começam a parar, uma, duas, três, tá ótimo! Espero que coloquem grana no chapéu pelo menos.

Um homem estranho me olha. Se veste como se não soubesse que estamos em 2018. Se alguém de um antiquário passasse aqui, com certeza levaria ele como manequim. Ele me olha com ar de nojo, adoro! É nesse momento que arraso.

Duzentos reais, arrasei! Ah, já passou um tempo do supermercado até aqui. Agora já quase dez da noite e estou me preparando pra ir pro Acquarius. Escolhi uma roupa simples. Calça roxa bem colada, um top de lantejoulas deixando a barriga de fora, sapato plataforma, tô básica. Vou deixar meu black solto ressaltando bem quem eu sou. Pera, você reparou desde o começo que sou negra, não é? Bem, estou pronta! É hora de Acquarius!

(...)

Droga, parece que quando mais temos pressa, mais as pessoas andam devagar. Como esses dias andam fadigados. Na verdade, sempre foram, mas parece que ultimamente estão mais. Preciso pegar metrô, encostar em um bando de gente. Eu sou bancário e graças a Deus estou de férias. Aos fins de semana eu gosto de fotografar coisas que não se comunicam comigo através de palavras. Árvores, prédios, o pôr do sol que some atrás de alguma coisa, um peixe espiando a vida dos outros dentro do aquário. Eu sei, é preciso sensibilidade pra entender o sentido que existe por trás de coisas tão perecíveis e eu sou sensível, apesar de guardar isso naquele bolsinho que vem dentro do bolso da calça jeans, pra que serve mesmo? Ah, olha eu pensando sobre coisas desnecessárias. Eu falava sobre o metrô... preciso pegar o metrô e descer na estação mais próxima do viaduto central. Hoje quero fotografar a cidade do alto, tentar pegar uns ângulos legais. Eu fotografo e coloco tudo no meu Instagram e tem gente que goste. Cheguei no metrô central. Tem uma bicha dançando “They Long To Be Close To You”. Como ela se atreve a acabar com um clássico como esse com sua dança ridícula? Que nojo! Uma bicha exibido a essa hora era tudo que eu não precisava encontrar. Não sei nem por que parei pra ver, deve ter sido pela música. Pelo menos isso temos em comum. Ela começa a dançar como se quisesse se exibir mais ainda só porque viu que eu estava olhando. Essas bichas são todas assim, não podem ver um macho que já se exibem parecendo pavões num zoológico! Saio, pego o metrô que graças a Deus não estava cheio. Sento e observo a cidade passando rapidamente. Me vem flashs da bicha dançando, por quê? Desgraça, agora sou obrigado ficar pensando numa bicha que se apropriou de uma musica que gosto pra chamar minha atenção. Desço na estação e finalmente estou no viaduto. O horário é caótico, mas faz parte. Avião voando, carros passando, pessoas sozinhas, um senhor fuma um cigarro sentado sozinho na praça, um casal briga, a mulher sai chorando. O que vou capturar? Não sou fã de fotografar pessoas, mas essas pessoas estão me contando uma história sem falar nada comigo. O senhor fumando sozinho deve ser que a mulher já morreu e pra ele só restou a solidão numa praça ou nunca foi casado e está até agora esperando o amor da sua vida. A mulher chorando, deve ter contado que estava grávida e a o cara deu um pé na bunda dela, no mínimo. Eu desço até a praça pra encontrar novos formas que instiguem meu olhar. O velho está mais perto de mim e ele é mais velho de perto. Encontro um chafariz e pronto, achei algo que vai me trazer uma foto bacana. Um anjo meio fora de forma que solta água pela boca, um vômito constante. Ele fica numa espécie de piscina onde dentro existem peixes, milagre algum morador de rua não ter pego algum pra assar na brasa. Difícil ver um peixe e lembrar da minha infância. Enfim, vamos as fotos. Estava tudo bem até aparecer um travesti na praça. Isso lá são horas de fazer programa, aberração?

- Oi!- ele falou comigo passando a mão num cabelo que ele nem tinha. –Você é fotógrafo?

Ignorei e fui pro outro lado e a praga ficou lá fazendo poses.

- Vem cá, não quer tirar uma foto minha?- ele estava um pouco mais longe e me incomodou ele falar alto comigo, as pessoas iriam prestar atenção, então fui até ele.

- Eu preciso tirar uma foto e você está me atrapalhando.

- Mas a praça é pública!- ele até sentou na borda da piscina ou sei lá o quê que é. Acho que é fonte mesmo o nome.

- Tá, eu tiro uma foto sua e você me deixa aqui quieto?

- Deixo sim! Como você quer que eu saia?

- Quero que você saia daqui!

- Não moço, na foto! – ela cruzou as pernas, argh!

- Como você quiser! - só quero que essa coisa saia.

Ele fez uma pose que mais parecia que um caminhão tinha acertado ele em cheio contra a parede, mas, pelo menos depois disso, se mandou. Ainda me admira esse tipo de gente. A bicha do metrô, o travesti da praça. Eles estão por toda parte, não gosto, mas devo confessar que de certa forma me prende e me hipnotiza. Todos os dias, em todos lugares, encontro gente assim. Confesso que desde muito novo, eu sentia uma certa atração pela figura masculina. Eu pegava as revistas pornôs que meu pai guardava numa caixa, na prateleira de ferramentas da garagem. Ele achava que eu não sabia, mas eu sabia. Eu pegava me escondia e via tudo com muita atenção. A mulher e o homem trepando. Eu observava mais o homem, a mulher não me gerava muito interesse.

Aquilo tudo começou a me deixar com dúvidas. Eu lembro vagamente de quando mais novo, que meu pai me dava tapas nas mãos enquanto me dizia “para de desmunhecar”. E eu nem podia chorar nem nada. “Aja como homem”, era que o que sempre eu ouvia quando demonstrava o mínimo de sensibilidade. Eu lembro, ainda nessa fase dos trezes anos, que minha mãe me levou num lugar onde um homem me ensinou a andar de forma mais masculina. Ele até gravava minha voz num gravador e me fazia escutar, repetindo com a voz cada vez mais grossa, até que um dia falei grosso, andei como homem e nunca mais lembrei de nada que veio antes disso. Só lembro em pensamentos como esse que estou tendo aqui, sentado nessa praça e tão só quanto aquele velho. Será que eu sou ele amanhã? Acho melhor ir pra casa, já fiquei tempo demais aqui.

O mesmo trajeto de volta, desço na estação e a bicha não está mais lá. Ainda bem! Chego em casa e durmo. Sonho que estou no alto de uma colina, fotografando o horizonte. Vejo um pássaro se exibindo pra mim. Começo a fotografa-lo e do nada estou num estúdio revelando fotos e a cada foto revelada, aparece a figura da bicha do metrô. Eu largo as fotos no estúdio e saio correndo e do nada estou numa estrada sem fim. Eu corro com a respiração cada vez mais ofegante e choro. Corro chorando e me ensopo de lágrimas. Então eu acordo pingando de suor. Já são quase dez da noite e eu nunca dormi tanto. Me deu vontade de sair, de ver gente, de ver a noite. Tomo banho, me arrumo e saio.

Caminho pela cidade sem saber ao certo pra onde estou indo, entro numa rua meio sem movimento, escura até. Mas vejo de longe, luzes de um letreiro brilhando ferozmente. Algumas pessoas conversam e fumam do lado de fora. “Acquarius”! Deve ser uma espécie de danceteria e pelo que ouço, me parece que toca músicas dos anos 80/90. Acho que encontrei meu lugar. Eu entro e lá dentro o ambiente é meio assustador. Tem homens se pegando, caralho! É uma danceteria gay! Eu vejo uma silhueta dançando embaixo de um globo de luz. Uma silhueta que não me parece estranha. É claro! É a bicha do metrô!

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 11/05/2020
Código do texto: T6944015
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