A Mala

A mala no canto da sala era a confirmação que ele iria deixá-la.

Velha companheira de tantas românticas viagens, agora iria traí-la acompanhando-o para outras paragens.

Muda, absolutamente impassível, tentava aparentar neutralidade, como diante de tantas recordações ela tinha essa capacidade ?

Carregava nas roupas, o perfume dele mesclado ao seu suor, por Deus, não existia cheiro melhor !

Levava embora souvenires de toda uma história, arrancava sem anestesia uma parte real da sua memória.

Trancada, transformava o dia-a-dia em segredos, ela sentia sua vida escorrer como areia na ampulheta, pelos dedos.

Tudo que ficou de fora a fitava com ressentimento, peças abandonadas neste momento, com a sensação que jamais seriam resgatadas, como ela, estavam juntas sendo abandonadas.

A dura justificativa que ele só estava levando o essencial soava tola, banal , remetia as antigas aulas de biologia e o conceito de seleção natural.

Só sobrevive quem e o que é mais forte, ao resto, literalmente o resto, resta a morte.

A mala, soberba, como um campeão no pódio, era o objeto de todo o seu ódio.

Ele deixou de amá-la pela mala, uma verdade que não se cala.

Ela desejava socá-la,chutá-la,quebrá-la, rasgá-la, deixá-la destruída em pedaços por toda sala.

Tolice, sabia que nem isso iria impedir sua partida, essa questão estava decidida, encerrada, irremediavelmente perdida.

Na verdade, já mais faz muito tempo que ele já tinha ido, pela casa vagava apenas seu corpo vazio e esquecido, muito parecido com um zumbi que sequer sabia o que ainda fazia aqui.

Agora é só a confirmação para o mundo, algo como desligar os aparelhos de um coma irreversível e profundo.

Ela desvia o olhar e segue para o quarto decidida, vai se trancar para não ver a derradeira despedida, decidiu não ser carpideira nem testemunha do enterro da sua vida.

Vai tapar os ouvidos para não ouvir seus passos, a quebra definitiva dos laços e o começo da dor pela ausência dos seus braços.

No peito a certeza que a próxima vez que a porta bater, nada mais haverá para se fazer, ela se fechará como a tampa de um caixão e dentro da casa dos rejeitados, só restará dor, mágoa e solidão.

Ello
Enviado por Ello em 08/08/2020
Código do texto: T7029370
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.