Sobre Seixos e Amores

“- Merei, não fique muito tempo no sol, dias quentes são para ser apreciados e não sentidos na pele.”

Toda frase dita com sentido duplo por minha mãe me deixava curiosa.

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Dias quentes não eram comuns nas terras altas, mas vez ou outra o sol se aproximava um pouco mais e costumávamos passar um tempo nas prainhas de seixos perto do largo rio. Adorava os contornos das rochas escuras, polidas pela força das águas e como vez ou outra apareciam moradores das redondezas para pescar.

Em um dia como esse conheci Oskar. Mas lembrar desse dia hoje é colorir o céu com mais cores do que de fato existiam. Ele era alto, mais magro do que deveria e tinha os cabelos longos, traços de povos que na época não sabia dizer quais eram, mas que meus olhos não deixavam de apreciar. Ele acompanhava seu pai, observava como as iscas eram postas e como magicamente os peixes surgiam. Naquele dia ele talvez não me notara, mas eu de fato o apreciei como um dia de sol.

A prainha não ficava muito longe de nossa casa. Meus pais carregavam nos ombros o peso de ser Devenes, então era comum papai estar repleto de afazeres da Universidade, já minha mãe, Ah o sorriso da minha mãe! Iluminava quem o via e aliviava o peso de uma vida regrada. Todos os serviçais a admiravam, a amavam e eu sentia a veracidade do sentimento. Quase sempre era mamãe que me acompanhava nos passeios, estendia um tecido grande nas sombras das árvores e lia seus romances enquanto eu caminhava descalça pelos seixos.

Para ela minha idade nunca foi limite, era minha mãe, minha amiga, eu via força nos seus gestos e o amor em seus olhos. Ela sabia o que tanto eu procurava a margem do rio, mas era difícil confessar.

As luzes que vi quando encontrei Oskar se mantiveram brilhantes por muito tempo. Ele passou a me olhar, trocávamos algumas palavras e curiosamente, quase sempre, era sobre peixes. A arte da pesca, como manuseá-los, quais os temperos que se podia utilizar, mesmo eu que não cozinhava me sentia inebriada pelo conhecimento dele, tão genuíno, tão simples e tão atrativo.

Não ousei a seguir as dicas, mas conversava com as cozinheiras perguntando se elas também sabiam sobre. ‘Isso é conhecimento de ribeirinho, senhorinha, não caia nas graças do Senhor do Rio’. Se conselhos fossem para ser seguidos e assertivos, não se precisava de um segundo, não é? Oskar era repleto de graça e as minhas visitas ao lugar, que já considerava nosso, eram cada vez mais frequentes.

Vez ou outra ele já estava à espera. Uma certa ocasião me entregara um peixe enorme. ‘Entregue a seu pai e diga que foi eu’. ‘Ele não sabe quem é você’. ‘Um dia ele saberá’, entreguei o mesmo para minha mãe. Ele sempre usava frases curtas e objetivas, poucas vezes me olhava diretamente nos olhos e nunca, nunca de fato tocara minha pele. Ser filha de Mary era bálsamo para quem nos via, ser Devene era cruz para quem ousava interferir em tradições. Mas dentro de mim crescia um sentimento intenso, capaz de superar os maiores obstáculos. Ele me fazia sorrir com a maior facilidade mesmo que o assunto não fosse divertido, era o prazer da companhia, a brisa fresca que surgia ou mesmo o cheiro de peixe que acolhiam meus sentidos e me deixava assim, de riso fácil e sobreposto.

Mamãe quase todos os dias deixava separado um livro sobre a escrivaninha e um tecido grande junto a cesta de frutas, ver a cena disposta era ter certeza dos nossos passeios. Longas eram nossas conversas, mas pouco falava sobre mim. Tinha medo de falar sobre Oskar, medo de ser repreendida, mas mesmo eu não sabia conter os meus sentimentos, a sensação de ansiedade parecia querer explodir meu peito, eu só queria um pouco mais da companhia.

Mamãe se dispôs à sombra, eu passei a caminhar. Os raios do sol quase me cegavam ao atingir a superfície da água. Meus pés queimavam e o caminhar se mostrava doloroso. Hoje já não sei dizer se o que doía de fato eram os pés ou se já era meu peito em prévia do que aconteceria. Ele não estava lá, não havia ninguém lá.

No dia seguinte também não.

Na semana seguinte também não.

Nas luas cheias seguintes também não.

Eu já não tinha o desejo de sentir os seixos. Já não visitava com frequência o rio largo. Passei a me empenhar nos afazeres e a cuidar das pessoas como se fossem elas a razão da minha existência. Já não comia e culpava a paixão pela dor que sentia, e mesmo eu tão nova me sentia azarada pelos agouros da vida.

Uma noite como outra qualquer minha mãe adentrou ao meu quarto, sentou-se ao meu lado na cama e passou a pentear meus cabelos, mesmo ela já não passeava com frequência e parecia dia após dia perder o rubor da face.

_Minha menina, o que te acontece? Nem mesmo tocou no peixe do jantar.

_Sem fome minha mãe.

_Tem coisas das quais precisamos conversar e creio que tardei como mãe para te dizer.

“ Uma sábia curandeira mais ao Norte certa vez recebeu a visita de uma donzela apaixonada, a moça aos prantos disse que não resistia mais um dia viva se ela não a ajudasse, a dor em seu peito era tamanha que lhe faltava ar nos pulmões e que se sentia perdida em meio a vida e ao amor. A curandeira, sem muitas palavras lhe entregou 3 pedrinhas escuras e disse a ela:' mesmo que a dor seja grande, entregue ao seu amado uma das pedras e tome distância, se o tempo curar as dores do peito e conheceres um novo amor, entregue a ele a segunda, talvez sofras novamente mas ficará com aquele que entregar a terceira pedra, mesmo que para ti ele surja de repente e pareça apenas como amigo, mesmo o amor precisa de tempo e ainda que não exista regras, amadurecer é parte do processo”

_ Aquele foi teu primeiro amor, Merei. O amor que se parece com os livros que tanto aprecio, o amor que parece não possuir limites e do qual você sente o peito arder.

_Mas eu nada falei sobre ele mamãe...

_Vocês dois, na beira do rio, ilustravam meu romance favorito. Eu disse a você, dias de sol precisam ser apreciados e não sentidos na pele, mas como boa filha que é, não me ouviu, e ambos sentiram a dor do sol que não apenas aquece, mas queima.

Ouvir minha mãe não era doloroso. Ela sabia mais do que eu sobre a vida, e o medo me impediu de procurar por sua ajuda antes.

_ Um minuto e eu já retorno.

Ao ver os passos acelerados passando pela porta, coloquei as mãos em meus cabelos e senti as longas tranças que ela havia feito, eu sequer notara o penteado tamanha a importância que era o afago de Dona Mary em mim.

Ela retornou com duas pequenas caixas nas mãos e me entregou. Pesos diferentes.

_Abra a mais leve Merei.

Havia um seixo escuro do rio.

_ Se lembra quando me entregou aquele peixe? Na noite daquele mesmo dia uma das cozinheiras me entregou este seixo, estava dentro do peixe enrolada por um bilhete molhado “1 /3”, levei um tempo para entender que era sobre isso que Oskar se referia.

_ Isso significa que eu sou o primeiro amor dele também, mamãe. O que de bom existe nisso?

_ Abra a segunda caixa.

Três pedras escuras, de tamanhos semelhantes, lado a lado.

_Merei, estas eu entreguei a seu pai ao longo da nossa jornada. Oskar lhe entregou a primeira, não significa que seja a última. Muitos dizem que na vida temos três amores, não significa que os três não possam estar no mesmo homem, é o tempo que determina. Isso não significa que ao longo da jornada você não conheça outras pessoas e até mesmo se apaixone, mas seu coração saberá distinguir amor e paixão e poucos você levará para sempre.

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A passagem de Lávi foi breve, a saudade dos meus pais é imensa e reviver tal lembrança fez aflorar em mim a certeza de que ainda espero pelo toque de Oskar e com sorte, pelo dois seixos que faltam.

Córdia
Enviado por Córdia em 10/08/2020
Código do texto: T7031681
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