MÁRMORE BRANCO



Estava só naquela caverna havia muito tempo. As irmãs tinham ido embora há quase dois séculos, porém lhe deixaram um legado interessante para mitigar-lhe a solidão: centenas e centenas de estátuas de todos os tipos e tamanhos. Era uma coleção incomum de peças jogadas ao acaso sem uma ordenação equilibrada, da qual se podia contemplar desde os ridículos mortais humanos até as criaturas mais poderosas e bizarras do submundo.


Todas as esculturas, concebidas em um estilo incrivelmente vívido, representavam uma diversidade grande das criaturas que viviam, ou já haviam perambulado por ali, naquela região ocidental do mundo, junto à entrada das Terras dos Mortos. Era neste local esquecido de fim de mundo que fora condenada a viver eternamente sozinha.


Ela já fora uma mulher de grande beleza, conhecida em toda a cidade de Atenas por sua vasta cabeleira negra que, de tão comprida, chegava quase a estender-se até o chão. Talvez ainda fosse bonita, mas não tinha como saber porque quando a trancafiaram naquela caverna sombria despojaram-na de todos os seus bens materiais, inclusive os seus grandes espelhos de onde podia cuidar da vaidade.


Na época em que fora amaldiçoada por ter se apaixonado por um Deus do Olimpo, ainda era uma mulher confiante no amor. No entanto, o tempo lhe mostrou que havia cometido um grave erro, porquanto a Divindade dos Oceanos, pela qual quebrara o seu voto de celibato como sacerdotisa do Templo de Atenas, afastara-se dela rapidamente, sem remorso, abandonando-a a sua própria sorte.


Nos últimos anos, depois que as suas irmãs também se foram, deixando apenas aquelas obras belíssimas do mais puro mármore branco, ela estava começando a sentir a falta de ser amada novamente. Passara o rancor amargo contra o sentimento horrível de ter sido rejeitada. As estátuas, por mais belas que fossem, não poderiam jamais confortar ou substituir pessoas e sentimentos de verdade. A solidão era muito triste.


Um dia, sem qualquer aviso, talvez pelo poder oriundo da maldição que a transformara quase em uma semideusa reclusa, ela sentiu o amor brotar-lhe do íntimo do seu ser por um jovem invasor da gruta em busca de aventura.


Ora, este amor clarividente a pulsar por toda a caverna era algo improvável de se conceber! Sequer havia posto os olhos no jovem semideus que viera, provavelmente, resgatá-la do seu injusto confinamento. Porém, quando os dois se encontrassem, ela tinha  certeza, o corajoso aventureiro também iria se apaixonar por ela! Sim, mesmo andrajosa e malcuidada daquele jeito.

 

Nervosa, impulsiva, desatou a correr, muito feliz, pelos caminhos labirínticos da gruta para encontrar-se com o futuro enamorado. Mas ao surgir de repente na frente do jovem guerreiro, ele inexplicavelmente levantou um escudo espelhado enorme que lhe cobriu todo o corpo.


Foi então, aos poucos, que a enclausurada entendeu a sua maldição!


Viver sozinha e reclusa naquele fim de mundo por tanto tempo parecia não ser o suficiente como punição. Uma deusa invejosa, ciumenta, amaldiçoara também os seus lindos cabelos compridos. Ela viu no escudo espelhado, surpresa, a sua enorme cabeleira se transformar em víboras diabólicas a projetar olhos luminosos intensos, dos quais começaram a fazer-lhe mal.


A última coisa que pôde perceber, já tarde demais, antes da vida se escoar rapidamente do seu corpo, foi quando levou o braço esquerdo à frente dos olhos e viu, apavorada, a sua mão transformar-se em um belíssimo mármore branco!


 



 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 04/09/2020
Reeditado em 19/03/2024
Código do texto: T7054788
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