Estrelas e Cicatrizes (Stars and Scars)

Eu tinha aquela vaga lembrança que recorrentemente vinha à tona. Éramos apenas eu e Luana contra o mundo. Melhores amigas desde que me conheço por gente. Ela sempre gostou de admirar as estrelas e tínhamos esse hábito de ficar olhando para o céu toda noite antes de dormir. Não me surpreenderia se ela tivesse aprendido a ler com os livros de Carl Segan, pois vivia compartilhando curiosidades incríveis sobre o universo. Nunca consegui entender esse seu fascínio, mas era maravilhoso poder ouvi-la falar.

— "Você é minha estrela favorita". — Dizia ela fazendo uma brincadeira com meu nome.

Tínhamos sete anos quando Luana partiu devido à morte de seu pai. A única prova que havia restado de que ela fizera parte de minha vida foi um colar que dividíamos o qual carregava um pingente de Lua Crescente e uma pequena estrela ao lado; “somos eu e você, unidas para sempre”, ela dizia. Prometi a mim mesma que não o tiraria do pescoço até o dia que a reencontrasse.

Por alguma razão, mesmo após dez anos, não conseguia superar o fato de que nossa amizade simplesmente se desfez. O tempo e energia que investia para tentar encontra-la nas redes sociais eram em vão, como se Luana nunca tivesse existido. Frustração esta que normalmente surgia nos piores momentos.

— Qual é seu problema hoje, Esther?! Está sem foco! — Gritou meu treinador após eu não conseguir me defender de seu soco. — Como pretende vencer a competição assim? — Retrucou me dando o golpe final.

— Não é nada. — Disse me recompondo.

— Você sabe que pode contar comigo para o que precisar. — Disse ele colocando a mão sobre meu ombro.

— Eu estou bem, juro. Agora preciso me aprontar pra aula. Obrigada por hoje. — Respondi sem muito animo.

—Aqueles idiotas pararam de mexer com você?

— Vão pensar dez vezes antes de falarem qualquer merda depois da surra que levaram. — Menti.

— Essa é minha garota! —Completou Bernardo, orgulhoso.

Bernardo se referia aos garotos da escola que já há algum tempo vem me importunando durante o intervalo. O ensino médio pode ser uma experiência um tanto quanto dramática quando se é introspectivo e eu tinha prometido ao treinador que lhes daria uma lição usando a “prática” de meus últimos treinamentos como desculpa, mas tudo o que eu queria era ficar longe de problemas, afinal era ano de graduação, faltava pouco para finalmente me libertar daquele lugar.

Meu refúgio costumava ser a biblioteca, pois sabia que Hugo e seus amigos passavam longe de lá. As janelas tinham insufilm para amenizar a entrada de luz, logo, era difícil enxergar quem estava do lado de dentro. No entanto, para minha surpresa, naquele dia encontrei uma garota sentada em meu lugar e eu nunca a tinha visto antes na escola. Ela usava fones de ouvido enquanto resolvia alguma questão de matemática e mal reagiu com a minha presença. A mecha branca no cabelo chamara mais a minha atenção do que os inúmeros furos na orelha esquerda. O lápis preto realçava seus olhos castanhos e bastante misteriosos. “Uau, ela é linda”, pensei. É normal me sentir atraída por alguém que nunca vi?

Acomodei-me do outro lado retornei com a leitura do meu livro “Anne of Green Gables”. Passados menos de trinta segundos, a garota da mecha se levantou, arrumou seu material e saiu apressada.

No mesmo instante, passou pela minha cabeça se havia uma mínima possibilidade de ela ter superpoderes e tinha acabado de ler meu pensamento sobre ter elogiado sua aparência. Fiquei um tanto intrigada com sua reação, mas seria egocentrismo demais achar que era por minha causa. Decidi continuar com a leitura que ficava cada vez mais interessante.

No entanto, percebi que já estava envolvida quando me peguei pensando nela durante as próximas três aulas. Fiquei distraída inclusiva na aula de História, minha favorita.

Queria muito vê-la de novo, mas ela já não frequentava a biblioteca há alguns dias. Eu a procurava em meio à multidão na entrada e na saída da escola, mas era como se realmente estivesse fugindo de mim.

Na manhã seguinte, Bernardo não pôde ir à academia, mas eu decidi ficar mesmo assim e aproveitar o tempo para refletir.

Quando era criança, ficava admirada vendo personagens femininas de filmes e séries lutando, sendo independentes e corajosas. Não era à toa que meu sonho era ser uma super-heroína. Hoje eu sou só a Esther, mas pelo menos aprendi como me defender (eu acho). A diferença entre mim e as super-heroínas é que normalmente elas são motivadas pela esperança e desejo de justiça enquanto eu, pela raiva.

Perguntas que continuavam sem respostas não importava quantas vezes socasse aquele saco de pancada; "Por que todos me abandonavam?" Primeiro meu pai, depois Luana, até mesmo o meu ramster fugiu... Pensava em Hugo e sua gangue covarde. Pensava naquela garota misteriosa que sentara no meu lugar na biblioteca. Que música estava ouvindo? Qual sua matéria favorita? Será que ela gosta de comida mexicana?

Meus ombros queimavam após tanta força que descarregava naquele saco até que chegou um momento que apenas parei, olhei para o espelho diante de mim e senti vergonha da pessoa que estava me tornando: alguém completamente covarde, longe do que sonhava ser enquanto criança. Foi quando as lágrimas vieram à tona.

Quando me dei conta, já tinha perdido a noção do tempo e não chegaria para a primeira aula.

Devido ao atraso, decidi cortar caminho pelo beco; uma passagem que ligava a avenida principal a escola. Costumava ser um trajeto movimentado durante o dia então acreditei que não teria problemas. Porém, no meio do trajeto, me deparei com Hugo e sua gangue. Estremeci.

— Ah Esther, então era você quem eu estava esperando. — Disse ele em tom ameaçador.

— O que você quer?

— Sabe, eu fui suspenso por três dias porque alguém fez uma queixa contra mim. Meus pais estão putos e me deixaram sem celular por um mês. O que sabe sobre isso?

— Eu não faço a menor ideia do que você tá falando. Hugo, você precisa entender que meu mundo não gira ao seu redor, eu tenho mais o que fazer do que prestar queixa contra você.

— Você é uma péssima mentirosa.

Foi quando o inesperado aconteceu: Fui golpeada na face direita do rosto o que foi suficiente para me fazer desequilibrar e cair no chão. Hugo não era tão alto, mas era grande e forte. Nem mesmo seus colegas admitiram o ato:

— Hugo, o que‘cê’ tá fazendo cara?! Ficou louco? É uma garota! —exaltou Eduardo.

— Se nos pegarem estamos fodidos! —Lucas completou.

— O que posso fazer? Ela me obrigou a isto. Se não quiserem ver, é melhor irem embora daqui. — Ordenou ele.

Eles correram enquanto eu tentava retornar aos eixos, mas Hugo retrucou dando-me um chute no estômago.

— Por que não está revidando?!— Gritou o agressor. — Anda! Levante-se e mostre o que sabe fazer! De que adianta estas luvas se não tem coragem de usá-las?!

—Não vale a pena. —sussurrei.

— Eu vou matar você!

— Esther?! — Perguntou uma voz conhecida. Era a garota de mecha branca que se aproximava.

— Vocês duas me pagam. Isso não vai ficar assim. — Ameaçou Hugo antes de fugir como um perfeito covarde.

— Meu Deus! Você está bem?! Precisamos te levar pra um hospital!

— Não, não, hospital não. Eles vão ligar pra minha mãe.

— Merda! Tá, mas temos que ir embora daqui antes que eles voltem. Vem, eu te ajudo. — Levantei-me com dificuldades e me apoiei em seu ombro.

Levou certo tempo para chegarmos até o ponto de ônibus do outro lado da rua onde pude me sentar e aguardar enquanto a menina misteriosa chamava pelo Uber. A dor abdominal era insuportável.

—Não posso voltar pra casa. — Disse preocupada e com certo esforço.

— Nós vamos pra minha.

— Tem certeza? Não precisa fazer isso, você nem me conhece.

— Vai ter que confiar em mim.

E por que eu não confiaria? Pensei. Já que provavelmente qualquer pessoa no lugar dela teria dado três passos para trás e fingido que nada estava acontecendo. Sabe Deus o que mais Hugo teria feito comigo se ela não tivesse aparecido. A garota misteriosa salvou minha vida.

Ainda que estivesse bastante sonolenta como se tivesse sido dopada, não demorou muito para chegarmos a sua casa. As cortinas fechadas e luzes apagadas indicavam que estávamos sós.

— Fique à vontade. Eu já volto. — Disse ela.

Aguardei-a no sofá da sala. Poucos minutos depois ela retornou com uma tigela com pedras de gelo, água, gaze e analgésicos. Ela tinha feito um coque que além de me ajudar a enxergar melhor seu rosto, denunciou uma pequena estrela tatuada no ombro bem próximo ao pescoço. E eu só conseguia relembrar meu pensamento no dia da biblioteca: “Uau, ela é linda”. Ao perceber meu coração acelerado, tentei quebrar o gelo:

— Incrível como estou tão cansada mesmo depois de só ter apanhado. — Ela riu.

— Você é sempre assim? Isso pode doer um pouco... — Disse enquanto espremia a gaze com água e limpava meu rosto.

— Aí! — Murmurei — Assim como?

— Sei lá, não está com raiva? Ele poderia ter te matado.

— Hugo é só um coitado querendo atenção.

— Mas poderia ter revidado.

—Isso dói! — Resmunguei novamente. —Eu não teria chances de qualquer jeito.

— Desculpe, espero que não fique nenhuma cicatriz.

—Antes fosse só uma marca externa pra me preocupar.

—Então você só iria desistir se eu não tivesse aparecido? — Perguntou dando continuidade ao assunto.

—Eu não tinha escolha.

— Tenho impressão de que você queria que ele continuasse.

Não sabia o que responder então só me calei, pois no fundo ela tinha razão.

—Por quê? — Ela insistiu.

—Não sei, me diga você. Por que está fazendo isso? Tenho a impressão de que quer compensar a culpa por algo.

Desta vez foi ela quem ficou sem resposta e apenas continuou passando a gaze gélida em meu rosto.

— Já deve ter percebido que temos muito em comum então sabe que não é a única que está escondendo alguma coisa. — Completei.

— Você está certa. — Retrucou desviando o olhar.

— Disse que eu poderia confiar em você, então essa é sua chance.

Ela então colocou a tigela e a gaze de lado e se ajeitou no sofá.

— Eu sou responsável pelo o que aconteceu.

— O que quer dizer?

—Fui eu quem denunciou Hugo para a diretoria.

— Mas por quê? Ele te machucou?

— Não, não, eu só estava cansada de vê-lo ameaçando as pessoas e ninguém fazer nada a respeito, mas eu não reuni provas o suficiente para que o expulsassem. Então, marquei um encontro anônimo e planejava faze-lo confessar, mas aí você apareceu primeiro e ele... Era pra ter sido eu no seu lugar. Eu sinto muito.

Fiquei alguns minutos em silêncio para digerir tudo aquilo.

— Vou entender se quiser ir embora. — Disse ela.

— Não, a verdade é que estou feliz por estar aqui. — Sorri. — Apesar de você não se importar de fato comigo e só está fazendo isso para se sentir melhor.

— Eu me importo. Mais do que eu deveria... Desde o primeiro dia que te vi na biblioteca.

Após poucos segundos numa troca de olhares intensa, nós nos beijamos. Um beijo que não saberia dizer quanto tempo durou. Era lento, mas tinha intensidade. Minhas mãos suavam e minhas pernas estavam trêmulas. Eu nunca tinha beijado uma garota antes. O calor começou a subir e eu tirei a minha jaqueta. O beijo foi o encaixe perfeito, porém ainda tinha algo naquela história ainda não se encaixava:

— Pera, e como você sabe meu nome? — Perguntei me afastando.

—Estudamos na mesma escola ué.

— Mas eu não sei seu nome.

— Faz alguma diferença?

— Não.

Só depois percebi que aquela foi uma pausa totalmente desnecessária, mas que não foi suficiente pra cortar o clima, ainda bem. Eu tinha acabado de levar uma surra, não devia estar muito bem da cabeça mesmo.

Tudo estava muito bom até ela resolver vir pra cima de mim como uma tigresa faminta e sem querer acabou apertando meu abdômen que estava extremamente sensível por conta do chute que levara. Acabei me afastando no mesmo instante.

— Nossa, me desculpa! Eu sou muito desastrada! — Lamentou ela.

—Isso não é culpa sua. — Retruquei um tanto frustrada.

— Você está bem? Tem certeza que não quer ir ao hospital?

— É melhor não, mesmo porque lá eu não vou receber esse tipo de tratamento. — Sorri com certa malícia.

— Vamos pro meu quarto. Quero te mostrar uma coisa. — Disse me puxando pela mão.

Um dia me disseram: “Se quiser saber mais sobre qualquer pessoa, conheça seu quarto”. E pensar que me deixei levar pelo seu estereótipo de garota rebelde como Avril Lavigne no inicio da carreira. O cômodo transpassava tranquilidade, provavelmente devido à cor lilás que se destaca em uma das quatro paredes. A prateleira ao lado da cama mostrava uma colecionadora nata de discos de vinil, além de livros variados e alguns porta-retratos.

A escrivaninha extremamente organizada alojava os materiais da escola, o notebook e os fones de ouvido. Ao lado da cama, descansava seu violão. Ela tirou o tênis e se acomodou na cama.

— Tem espaço para nós duas. — Ela disse.

Assim que me deitei ao seu lado, ela me envolveu em seus braços num abraço caloroso. Estava tão aconchegante que por um momento me perguntei se eu era digna de todo aquela brandura.

Em seguida, com a ajuda de um pequeno controle, ela acendeu seu lustre. Eu não tinha reparado antes, mas ele funcionava como um projetor de pequenas estrelas e luas no teto. Abri um leve sorriso.

— Você é minha estrela favorita. — Disse sussurrando em meu ouvido.

FIM

(20/10/2020)

Dia Mundial do Combate ao Bullying

Giulianna Loffredo
Enviado por Giulianna Loffredo em 23/10/2020
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