SOZINHA

Ela fingira olhar para Carlos com um olhar intenso e firme. Fingira morrer, quer dizer, amá-lo com todas as suas forças sem medo e sem ternura.

Calma, ela olhou de verdade e sorriu para si mesma com aquele jeito mais irônico de ver as coisas, o passo tranquilo sob o salto ainda equilibrado. Nada rompia aquela tristeza maravilhosa que a acompanhava até a tarde do dia seguinte. Pois ela queria fingir que não estava morrendo pouco a pouco sem lágrimas e com a ausência de Carlos. Ele afinal soubera dividir o tempo com os amigos, viajar, entregar cada momento a cada momento, seguir a receita de viver sem cansaços.Ela não. Se viesse a ter saudade de quando tinha tempo para olhar as coisas lá fora, o mar talvez, se viesse a sentir tamanha falta de sentido não aguentaria mas, quem sabe, se fosse ao lado dele não teria tanta indecisão. Ela calmamente circulava nos espaços que se encontravam como linhas de pólos opostos, ela mesma atraída à própria consciência, seu eu vivendo de alegrias mornas como rir de um macaco. Adivinhava então que aquilo era mais que uma ideia de si mesma, não era um espelho nem mesmo um rosto colocado numa tela: era algo como simplesmente sentir que poderia amar sem ser tocada, viver o desejo sem alucinação, caminhar triste ou feliz para qualquer fim. Talvez não saberia bem como explicar a Carlos que não existia entre eles uma história rica de nuances e desvelos, mas, o cuidado que ela tinha em não deixar que ele se aproximasse menos já era um sinal de que o amor partia dela e para ela voltava - sem contornos nem falhas. Algo como sobrepor camadas e depois fatiar cada sentimento colocando-os um atrás do outro, numa ordem proporcionalmente dúbia e desajustada, um caminho que ela escolhera para sentir-se segura quanto ao passado que se realizava sempre e constantemente a cada novo olhar que ela fingia ser o melhor a dar de si, o medo de conseguir mesmo ser feliz para o resto da vida. Sozinha.

Silvano Gregorio
Enviado por Silvano Gregorio em 03/11/2020
Código do texto: T7103226
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