ENCONTRO

Há tempos, tento me livrar desta obsessão. Nado contra a mesma correnteza todos os dias e receio que minhas braçadas não me levem a lugar algum. Canso-me mais de mim do que de tudo que procuro evitar.

Penso em você.

Fui imprudente com o destino, desafiando suas diretrizes, como quem foge dos afluentes de um rio sem rumo. Mas que outra opção existia? Éramos tão jovens, eu talvez um pouco mais do que você. Alguns anos, poucos ou mais outros tantos. Não sei. Deixei de fazer contas sem sentido.

Guardo as fotografias em uma caixa que se desfaz sem cerimônia, sobre a última prateleira do velho guarda-roupas, que abriga poucas vestes e muitas memórias, como se fosse uma urna funerária das cinzas daquilo que já foi presente.

Amei. Nunca duvide disso. Amei como só os muito tolos podem amar, sem reconhecer as fronteiras da lucidez. Amei como só pude uma vez amar.

Guardo como posso as lembranças que já não me cabem na alma. Preciso recontar o mesmo enredo, noite após noite, para que talvez tudo se dilua nas palavras que um dia pensei em dizer, e que agora só me resta escrever.

Aconteceu há muito tempo. Tempo que não volta. Tempo demais.

Ao contrário dos outros casais divorciados, meus pais faziam questão de manter um relacionamento civilizado. Conversavam sempre sobre a minha educação e as oportunidades, sobretudo culturais, que deviam me proporcionar. Talvez por achar que minhas asas ocupavam espaço demais no ninho, minha mãe decidiu que já era hora de eu estreitar o relacionamento com o meu pai. Eu tinha acabado de completar 18 anos quando pousei ali a mala, mais vazia do que cheia, e aguardei.

Se há algo de que sinto saudades é do sorriso franco do meu pai. Possuía a habilidade inata de fazer qualquer um se sentir parte do seu mundo. E era assim que eu me sentia. Perto ou longe, ele me passava segurança.

─ Pronto para a grande aventura?

Eu respondi com um sorriso sem graça. Não queria esfriar o entusiasmo do meu pai. Era visível o esforço desprendido para tornar aquela viagem inesquecível para mim. Mal sabia ele, que mesmo depois de décadas, eu não teria esquecido. Ou superado. Nem a viagem. Nem você.

Fotógrafo de uma revista de renome internacional, meu pai, volta e meia, precisava viajar para lugares inusitados. Desta vez, ficaria dentro do território nacional, mas aquele já era um outro mundo para mim. Incumbido de retratar a região amazônica e suas peculiaridades, ele vinha percorrendo o rio Amazonas durante semanas. Encontrou-me no porto de Manaus, e de lá, seguimos de lancha. O destino me era desconhecido. Fazia parte da grande aventura, segundo meu pai.

E em um restaurante de beira de rio, pude afinal vivenciar o primeiro contato com a culinária regional. Estava com fome, faminto como todo adolescente, mas mesmo assim, a curiosidade pelo entorno fazia com que eu fotografasse tudo, como se as cores fossem escapar de repente. Talvez não houvesse mesmo outra chance de registrar o que via. Não era uma época de instantâneos, de postagens sucessivas em redes sociais. Nada de celulares, estes nem existiam. Carregava uma câmera fotográfica profissional, de segunda ou terceira mão, herdada do meu pai no Natal anterior.

A mesa escolhida, que não parecia ser grande o suficiente, muito menos firme, equilibrava-se em uma espécie de calço improvisado e aos poucos enchia-se de travessas e pratos, iguarias típicas da região. Aquele volume de cores e sabores me causou, a princípio, certa estranheza. Ouvi atento as explicações paternas sobre cada prato, cada bebida, e tudo provava com a audácia dos muito jovens. Um senhor aproximou-se com outro prato, que cheirava a desconhecido, e logo tratou de apresentar o peixe, pescado, segundo ele, há poucas horas.

─ Quem come jaraqui, não sai mais daqui.

Tive de rir porque a rima era tão desproposital quanto grudava na mente como uma música ruim. Fiquei fascinado com os odores, o gosto de tudo que me era apresentado com tanta fartura. Tucupi, tacacá, tucunaré, tantos nomes e sabores diferentes, que eu duvidava conseguir provar tudo aquilo.

Foi quando vi você.

Os olhos oblíquos que pareciam ter trocado de lugar com os lábios, pois sorriam como boas-vindas sem partidas. Assim que fixei os olhos em você, percebi que também olhou para mim, mas tão breve foi o pouso do seu olhar que nem retina ou memória seriam capazes de guardar minha imagem.

Atordoado com a novidade de sentimentos, isolei-me de todos os ruídos ao redor. Ali só merecia destaque uma pessoa. Você. Passei a reparar em tudo, no modo como servia os pratos, repunha copos e talheres. Notei como se livrava dos avanços inconvenientes, como se fingia de surda para evitar as cantadas dos fregueses mais abusados.

Era impressionante ver a sua agilidade ao lidar com o serviço e ainda distribuir tanto encanto. Os cabelos longos, esbarrando sua escuridão pelos ombros e avançando pelas costas, sem nós, como se pedissem o deslizar de dedos. Trazia o contraste do sol nos olhos e as sombras criadas pelas mechas pesadas e lisas.

Desejei captar aquele momento, aquele instante que me pareceu pura magia. Mirei a câmera fotográfica. Vi quando parou, assim de repente. Assustei você? Não, fotografias não deviam ser mais novidade para você, mas talvez o modo abobalhado como eu a olhava, talvez.

─ Não!

Foi a primeira palavra que me dirigiu. Não sei se a ouvi primeiro, ou se a li em seus olhos.

Depois, você me deu as costas e continuou a tirar os pratos e pegar outros, deslizando entre as mesas daquele pequeno e improvisado restaurante. Fiquei imaginando qual seria o seu nome, quantos anos teria, porque parecia tão ligeira como uma menina, mas seus olhos já apontavam para outro horizonte.

─ Acho que chega de novidades por hoje! – A voz paterna me trazia à realidade.

Ainda vi você entrando pela porta que daria provavelmente para a cozinha. Quis seguir seus passos, mas meu pai já me puxava em direção contrária.

─ Vai com calma aí, rapaz. Quem muito quer, acaba é com indigestão das bravas.

Não lembro se foi o meu pai quem me alertou ou se foi o senhorzinho do peixe, o tal do baquiri. Não, jaquiri.

Passamos os dias seguintes, explorando a região, experimentando cada nuance da cultura daquele povo hospitaleiro. Conheci comunidades indígenas, saboreei frutas até então desconhecidas, cupuaçu, inajá, tucumã, umari, cajá. E a cada mordida, esperava rever a linda mulher que ainda atravessava meus pensamentos como o canto dos pássaros. Mas naqueles dois dias, nada me levou aos seus encantos. Mesmo com a minha insistência, não voltamos ao mesmo restaurante. Suponho que meu pai tenha suspeitado do perigo por trás da fumaça de hormônios.

No quarto dia, acordei certo de que aquele seria mais um arrastar de momentos. Nada de especial, nada a rabiscar no diário de bordo. Uma data sem indicações de surpresas, com discreta presença no calendário rasurado, preso numa das paredes na pousada. Assim parecia o dia: tranquilo, neutro…ou chato.

Resolvi caminhar pelas proximidades, desta vez, sozinho. Meu pai ainda roncava, detonado pela cantoria e bebedeira da noite anterior.

Segui por uma trilha aberta com capricho, talvez um caminho com propósito turístico. Logo ouvi vozes. Olhei para um grupo de turistas que observavam um moleque subir em um pé de açaí. Não, não era um moleque. Era você, usando apenas tiras de corda nos pés para se agarrar ao tronco, em ligeira escalada. Poucos minutos depois, deslizou de volta ao solo, trazendo um cacho de frutos arroxeados e cobertos com uma leve camada esbranquiçada.

─ Precisa provar o açaí – você me alertou enquanto servia o mais doce olhar. Sorria.

Jurei que preferia morrer ali mesmo a desmerecer aquele sorriso, que talvez cedesse a todos, mas a mim pareceu exclusiva dádiva.

Passei a repetir o mesmo trajeto todos os dias. E aconteceu de encontrar novamente você. Desta vez, sozinha. Ninguém mais ali, só você. Sem dizer uma palavra, puxou minha mão e me conduziu até uma nova trilha, forçando a passagem pela vegetação que se tornava cada vez mais densa. Tucanos e araras, um exagero de cores planava sobre nós, abençoando aquele desatino sem volta. A umidade do ar fazia a roupa grudar à medida que adentrávamos a mata. Perdia-me, e você finalmente me via.

Chegamos a uma pequena cabana, quase em destroços. Um abrigo já esquecido pelo tempo, um esconderijo talvez. Fizemos ali, o nosso porto, momento de desembarcar desejos. O melhor modo de se esconder do bom senso é viver o acaso.

Você veio até mim. Como a lua encobrindo o sol que ainda insistia em brilhar. A pele suave, cheirando a tudo que eu jamais havia provado. Brisa soprada sem sustos. Com urgência de bicho acuado, aninhou-se nos meus braços, sem perceber que eu já era seu. Laço sem nós, abraços a sós. Não digo que você se entregou a mim, pois seria mentira. Antes, admito que eu tenha cedido a cada desejo que se desmanchava em gemidos. Deu-se assim a revoada de anjos, sucessão de gemidos, conversas veladas dos corpos, secretos dizeres, confissões aos ouvidos. Depois, apenas o silêncio sagrado, alheio a tudo mais. Promessas implícitas em palavras não ditas. O tempo passava e tudo acalmava, até você adormecer.

Repetimos o ritual secreto, sem dizer nomes, ou futuros. Você ria do meu deslumbramento, e eu revia o prazer nos seus olhos. Águas pretas, como as do rio Negro. E eu, já um tanto avermelhado pelo sol diário, revelava ainda uma intimidade de águas claras, que você apelidou de seu Solimões.

Deixamos de contar os minutos, já colhendo quase uma semana daquela procissão de encontros. Sementes eram os segundos, voando como pássaros, pétalas entreabertas de uma enorme vitória-régia, sem a ameaça de outros acontecimentos. Surpresa afinal foi ver que raízes já existiam em mim. Não eram âncoras ou amarras, mas apoio e sustento ao que sentia. As vezes fizeram-se refletidas em querer. Os risos espalhados nas trocas repetidas.

─ Por que não me deixa tirar uma foto de você?

Suspirou como se sentisse preguiça de me explicar o que para você era simples e natural.

─ Tem que me guardar aqui, e não em um pedaço de papel. – Você falou tocando meu peito, embora do lado oposto do coração.

A mão deslizou pela minha pele, experimentando novamente os mesmos caminhos e reconhecendo outros tantos. Sorriu, chamando a atenção para o contraste das nossas cores.

─ É como aqueles dois rios. Tão juntos e tão diferentes.

─ Fala do encontro das águas? É realmente impressionante.

─ A água branca e a água preta, feito lua partida. A gente é assim, vê?

A imagem das nossas peles sobrepostas, as mãos entrelaçadas, um mar revolto de contrastes que me aprisionavam ao seu corpo. Eu queria mais, e sempre daria mais, como prova de uma lealdade que não via sentido em questionar.

Neguei seu pedido de guardar sua imagem só na memória. Desautorizei qualquer censura ao meu desejo de registrar a felicidade que me tocava. Antes do entardecer, aproveitei-me do seu sono, da mansidão do seu corpo sob o meu olhar. Linda como nenhuma mulher jamais seria aos meus olhos. Busquei os melhores ângulos, para captar o que já me chegava ao coração.

Outros dias se passaram. Plenos, vorazes encontros, curtos em duração, mas eternos em significado.

Meu pai não questionou as minhas escapadelas. Estava muito entretido com o trabalho e quando nos encontrávamos para a refeição da noite, ele se contentava em me ver bem e abria mais um dos seus sorrisos acolhedores.

E o tempo voou, veloz, como acontece com os dias felizes. A realidade acenou com impaciência. Fingi não ver.

─ Já fez a mala?

─ Como assim, pai?

─ Depois de amanhã é o dia do seu embarque.

Calei-me sob o impacto daquela notícia. Cogitei ficar mais um pouco, mas ele me lembrou que devíamos cumprir com o planejado. Mina mãe me aguardava.

─ Não posso partir agora…

Meu pai pousou a mão em meu ombro. Seus olhos não sorriam, mas compreendiam. Calou-se para não estender meu desespero, que eu teria de enfrentar sozinho.

A noite não me trouxe sossego, muito menos resignação. Amanheci decidido, e fui atrás do que julgava ser minha felicidade. Dezoito anos! E eu me considerava homem capaz de desafiar o destino.

Já era hora de enfrentar os fatos: eu morreria sem você. Então, passei a planejar uma forma de resolver aquele impasse. Procuraria você, iria convencê-la de que nossas vidas estavam entrelaçadas. Tudo havia de se acertar. Ficaríamos juntos. Para sempre, como devia ser. No começo, minha mãe talvez tivesse um pouco de ciúmes, mas logo se encantaria pelos seus olhos-sorriso, por me ver tão feliz. O meu pai, certamente me apoiaria, pois desde o minuto que deitei os olhos em você, ele soube que eu estava apaixonado. Ficaria ao meu lado como sempre. Fui procurá-lo, certo do seu acolhimento, do sorriso que nunca me negaria.

─ Calma aí, filho, as coisas não são bem assim… essa bagunça. A cabocla tem família, não é solta na vida, não.

Senti o corte na carne.

Dei as costas ao meu pai, ao meu passado como se não houvesse mais um pretérito a preservar. Qual o problema se minha namorada tinha pais zelosos? Decerto, eles ficariam contrariados a princípio, mas depois se acostumariam com a ideia. Eu seria bom para ela.

Ah, eu sabia tanto de nós, mas tão pouco de você!

Percorri a mesma trilha por onde vi você seguir a cada entardecer, misturando-se com as luzes que se desfaziam ao pôr do sol. Haveria de encontrar o caminho até você, e deixaria seu sorriso contaminar o meu com promessas renovadas. Já imaginava a cerimônia perfeita à beira de um igarapé cheio de lindas vitórias-régias, os lábios tingidos de urucum, o olhar enfeitado pela sombra do içai, todos os clichês amazonenses. Eu seria então o seu par, cúmplice da vida inteira.

Então eu vi você.

De longe, os cabelos soltos, uma cascata negra, fluindo sem descanso. Eu já era capaz de reconhecer você de todos ângulos, sem precisar de lente de aumento, pois o amor fazia maiores as pequenas memórias. Meu corpo buscava pelo momento do abraço, pelos beijos que ainda eram poucos diante da voracidade que me arrastava para suas águas.

Quando se virou, vi que era mesmo você. Sempre foi você. Mas contrariando meu apelo silencioso, não me viu. Foi o segundo corte que senti.

Por um momento, parei de respirar. Senti que era invisível, quase desnecessário, um elemento destoante naquele cenário quase paradisíaco. O sol, baixando lento e cuidadoso, desenhava sua silhueta com delicadeza. Encantei-me novamente.

Então, veio o terceiro corte.

Ele. Aproximou-se de você, com a segurança de quem reconhece a extensão de pele a beijar. Pousou a mão sobre o seu ombro e fez com que olhasse para ele. Você o notou, mas não a mim. O seu sorriso abriu-se invadindo também o olhar. Pensei em correr e afastá-la daquele sujeito, que já abraçava o seu corpo com sentido de propriedade. Trazia uma certeza nos gestos que, se não era amor, parecia suficiente para você. Intimidade de posseiro, de quem já tinha vivido vários ciclos de sol e lua em sua companhia.

De longe, pude ver seu olhar esticar-se na direção oposta ao meu. Então, percebi o que a deixava tão feliz. Um menino corria, ligeiro ao seu encontro. Reconheci os traços, o sorriso, você inteira naquela criança. Beijos e abraços. Você era o mundo dele. E ele, o seu.

Os cortes se multiplicaram. Todos os meus sentidos sangravam.

Antes que o ar me faltasse totalmente, abandonei o local e todos os planos de felicidade. Ouvi batuques e canções misturando-se à minha respiração. O que mais seria preciso para que eu entendesse que era o fim de tudo? Sem enxergar, sem quase respirar, consegui ainda dar alguns passos. Então parei ao encontrar aquele que deu sombra ao meu desabar.

Meu pai estendeu os braços e me segurou com firmeza, como se pudesse recolher toda a minha dor. Também fora testemunha da bela cena familiar. Talvez já soubesse de tudo, e por isso tentava me alertar. Era o que queria me dizer o tempo todo: você tinha mesmo uma família.

Sem pudor algum, chorei por horas. E com a camaradagem de náufragos, dividimos, meu pai e eu, uma garrafa de alguma beberagem. Até hoje o sabor me vem à língua. Adormeci com o peito repleto de pedras, e a cabeça tomada por ondas de tristeza. Amanheci, quase morto, vazio da cabeça aos pés.

─ Bom dia, filho. Quer café?

Não respondi. Nem sorri. Nem mostrei gratidão. Assim ficamos, calados. O meu silêncio traduziu-se em recusa de reviver a decepção. A primeira desilusão amorosa. Meu pai respeitou o meu calar, as feridas tão recentes e os sentimentos brutalmente revirados. E eu o amei ainda mais por isso.

Era hora de partir.

Consigo me ver subindo na embarcação, depois de me despedir mais uma vez de meu pai. Custou-me abandonar seu abraço. Já de olhos secos, dei um passo atrás do outro, lutando contra a tentação de olhar para trás. Não olhei.

Como último aceno de adeus, insinuou-se o entardecer, o pôr de sol começando a tingir o céu. Do convés, olhei para baixo, e enxerguei o momento partido. Tudo por ali passava, tudo fluía, tudo também se esvaía. A velocidade dos rios seguia tão desigual quanto os nossos destinos. Um reflexo no espelho do tempo.

As cores e os ritmos díspares, dois rios convergindo para então desembocar no grande Amazonas, no abraço que nunca mais findaria. Águas que se encontravam, mas não se misturavam. Não naquele momento.

Como nós.

Percebi então que nunca nos tornaríamos um só. Abriu-se em mim um novo corte, separando querer e poder.

Se eu pudesse voltar no tempo, contemplaria mais uma vez aquelas águas com ambição de mar. Mergulharia ao encontro dos tons a cobrir a imensidão sem fim.

E por um instante, um único e breve instante, desejaria também ser mar.

Claudia Roberta Angst
Enviado por Claudia Roberta Angst em 01/12/2020
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