No Apartamento ao Lado


       
Anelise chega tarde e estressada após mais um dia de trabalho cansativo e se joga no seu sofá macio. Vai tirando o casaco, os sapatos, se livrando de tudo como um guerreiro que quer se ver livre da armadura após uma árdua batalha. Se afunda escorregando o corpo até ficar com as pernas retas, a coluna torta, isso mesmo, do jeito mais gostoso, e mais errado de se sentar. Estica os braços para trás e olha o apartamento vazio, solitário, e sente mais uma vez vontade de chorar. Já faz alguns dias que a solidão apertou de verdade, ela anda desnorteada.

        Ela é uma mulher moderna, independente, mora no seu apartamento próprio, tem um bom cargo numa multinacional, e está solteira, já faz algum tempo, já que ela não contabiliza relações que não duram mais de 1 ano.

        Os seus pais moram no interior do estado, ela é a caçula de 4 irmãos, todos casados e com filhos e também é a única que chegou mais longe na vida profissional. Fez faculdade com dinheiro de muito trabalho e cresceu profissionalmente buscando sempre o topo. Ainda falta muito para chegar onde ela quer, mas ela sabe que poucas conseguiram estar onde ela já chegou!

        Por outro lado, a vida pessoal é um fiasco. As relações duram pouco, sempre até ela descobrir que: uns só queriam aproveitar da sua boa situação financeira e com uma semana de namoro já estavam querendo as chaves do carro, do apartamento, esquecendo a escova de dentes, uma noite de sexta virava um final de semana, depois uma semana inteira dormindo no seu apartamento.  Outros não gostavam de frequentar os restaurantes porque não podiam pagar a conta, e não a levavam em outro porque achavam que era pouco pra ela. Os mais velhos que trabalharam com ela acabavam competindo e perdiam o rebolado quando ela se saia melhor e ganhava destaque, os mais novos eram 'galinhas' e imaturos.

        Na cabeça dela as frases: "Não existe homem certo!", "Homem não presta!", "Homem foge de mulher independente!", "Homem gosta de mulher submissa!", se repetiam até fazer ela chegar à conclusão de que tudo isso era verdade.

        Aneliese deve estar na casa dos 20 e poucos ou no máximo 30 e poucos, ela é jovem, linda, e fica mais jovem ainda quando não está dentro das roupas formais que o trabalho exige. Mas anda sem brilho, se cuidando menos, parou de sair porque as baladas só servem para quem não quer nada com nada, e beijar bocas desconhecidas nunca foi o seu forte, nem na adolescência, transar por transar então, nem pensar! Mas ela sabe que a maioria pensa o contrário, imaginam que uma mulher independente que mora sozinha é sinônimo de vida de farra, e que mantém a cama quente todo final de semana e com homens diferentes.

        Descobriu a algum tempo os sites de relacionamento, e a 6 meses participa de encontros de solteiros e já conheceu todo tipo de homem que se possa imaginar. Ela nunca acreditou que isso pudesse dar certo, e por isso tinha receio de acessar e nunca sentiu vontade também, mas acabou viciando, e era só chegar do trabalho, revisar alguma coisa pendente, ler e-mails importantes e lá estava ela navegando feito doida por horas seguidas, conversando, e com o coração e a mente pedia à Deus que desse fim na sua solidão.

        A internet já preenchia 50% do vazio, porque assim ela não se sentia tão só.

        Tinha dias que ficava triste com as respostas ou com as 'entrevistas' que ela fazia quando aparecia alguém interessante. Ela percebeu a enorme diferença de interesses que existe entre homens e mulheres quando procuram por alguém.

        Ela sempre perguntava do que gostavam de ouvir, de conversar. Ela queria conhecer mais a pessoa em si, muito antes de querer ver a foto ou algo mais.

        Eles não! Sempre já começavam relatando o perfil de mulher que queriam como o físico e a estética, e antes mesmo de trocar uma mensagem já pediam: 'tem foto, põe ai! Deixa eu ver como vc é!' Ai ela já desistia e partia pra outro. Queria encontrar alguém à todo custo que valorizasse a mulher antes de tudo. Mas descobriu que o mundo virtual é tão cruel quanto o real. Há muito mais interesse pela 'casca', a 'embalagem', do que o conteúdo!

        Até homens muito feios, e muito velhos tinham a coragem de expor as suas caras feias e ainda por cima exigir a foto de quem estava do outro lado senão a conversa terminava, senão na hora, no outro dia não respondiam mais, ignoravam.

        Ficou brava e resolveu ir a um estúdio e fazer as fotos mais maravilhosa que conseguisse. Quando se olhou depois no espelho assim que a maquiadora terminou, se espantou e viu o quanto uma maquiagem bem feita e um cabelo arrumado podiam levantar o astral e a auto-estima, se sentiu linda, e entrou no clima para criar o seu book.

        A fotógrafa a deixou a vontade, criaram situações, caras e bocas para fazer as fotos. Foram horas para tirar e horas para selecionar as que iriam para o book.

        Como acontece com todo mundo, ao ver as fotos ela não gostou, se achou gorda, achou que um olho sempre saia mais fechado que o outro, o sorriso estava 'amarelo', e procurou mas não encontrou de jeito nenhum a mesma mulher que ela via no espelho.

        Entristeceu e acabou escolhendo de qualquer jeito, porque todas na sua opinião estavam horríveis.

        Chegando em casa selecionou inúmeras vezes as consideradas melhores e guardou numa pasta no PC para enviar quando pedissem, e colocar nos sites de relacionamento.

        Ela estava incrivelmente linda, e isso atraiu muitos supostos pretendentes, no início foi uma euforia, eram ínumeros e-mails, convites, ficava até altas horas no msn.  Se dispôs a conhecer os pretendentes pessoalmente um a um. Com nenhum iria rolar beijo ou algo mais, mas se encontrando ela se daria a chance de conhecer de verdade (pelo menos foi o que ela pensou).

        Se deu mal, a maioria não era nem 50% do que pintavam enquanto estavam na NET, e outros já iam pronto para transar.

        Ela parou e percebeu que tinha se tornado tão superficial quanto os homens que ela abominava, estava dando cada vez mais valor a aparência, a embalagem, a casca.

        Se sentiu só, chorou e teve certeza de que estava entrando em depressão. Sozinha, sem amigos, sem a família, e sem a NET que ela não queria mais, excluiu tudo os nicks e senhas, apagou tudo dos favoritos e desapareceu do mundo virtual.

        Seis meses se passaram, ela minguou como pessoa, mas como profissional só cresceu, e para o próximo ano já estava até contando com mais uma promoção.

        Viajou de férias, se recompôs como mulher, deixou o estresse e o cansaço de lado. Conheceu mulheres de vários lugares do mundo, e todas elas com o mesmo problema. Se sentiu melhor (não porque as outras também estavam na mesma posição), e sim porque ela não era a única, e descobriu que o que está acontecendo é um problema que está assolando a maioria dos seres humanos. Homens e mulheres estão se desencontrando e ficando cada vez mais distante um do outro. A liberdade sexual, a competição no campo profissional, estão abrindo um enorme vazio que está os separando como um abismo entre 2 mundos.

        As férias e as novas amigas a fizeram ver de forma diferente muitas coisas, principalmente a valorizar as coisas simples.

        Ela mudou e tentou buscar dentro de si a menina sonhadora e doce que tinha ficado lá no interior. Pois aquela menina sem ambições é que era feliz e não sabia.

        Voltou renovada, e todos perceberam as mudanças, e ela continuou na dela.

        Certo dia resolveu fazer um bolo (coisa que ela não fazia à anos, porque tinha pavor em pensar em engordar), e se descobriu sem farinha, e sem açúcar. Pensou: "Nossa! Nunca troquei um bom dia com os vizinhos. Quem sabe se eu for pedir emprestado o açúcar em um apartamento eu faça uma nova amiga, e a farinha em outro, faço outra amiga!"

        Passou em frente ao espelho e só ajeitou o cabelo que estava apenas preso com um palito, e foi. Bateu na porta ao lado, apertou a campainha e nada. Pensou em desistir, se sentiu ridícula acreditando que depois de anos com toda aquela arrogância ninguém a receberia bem, pois nunca se preocupou em ser gentil.

        Quando se preparava para virar as costas e retornar, ouviu alguém falar ofegante:

        - Quando será que vão consertar de vez o elevador? De cobrar todo mês eles não se esquecem né?

        Ela ficou sem jeito, não sabia o que dizer:

        -É verdade. - sorriu pra ele.

        -Em que posso ajudar a minha vizinha?

        -Estava fazendo um...pretendia fazer um bolo e descobri que não tenho açúcar e farinha.

        -Ainda bem que não são ingredientes tão importantes para a receita né?

        Os dois riram, riram gostoso, como ela já não fazia a muito tempo.

        O professor de física com o seu monte de livros nos braços abriu a porta e a convidou para entrar.

        Aquela noite ela conversou quase que toda, ao vivo e pessoalmente. Conheceu um homem maravilhoso que com certeza só estava solteiro porque não tinha tempo para conhecer as pessoas e tinha se cansado como ela, das coisas superficiais.

        A partir daquele momento, nunca mais a noite dos 2 foi solitária e fria.

        Naquela noite o bolo não saiu porque os dois eram péssimos cozinheiros, mas ao longo dos anos e os filhos ensinaram os dois a se virarem no fogão.
Anne Valentine
Enviado por Anne Valentine em 29/10/2007
Reeditado em 09/03/2009
Código do texto: T715056
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