Ironias do destino para um amor sem fim

- Fica com Deus! Vou te ligar, tá? Ele disse na despedida, sem dizer que a amava.

Virou as costas e se foi! Antes de deixar o saguão do aeroporto em direção ao embarque, ainda se voltou e a viu chorando no ombro da amiga, que talvez tenha ido junto na despedida prevendo o que aconteceria. Era a primeira vez que a viu chorando.

Algumas horas antes a despedida tinha sido silenciosa. Ele arrumava ainda alguns teréns em uma mochila. Ela o fitava da rede em silêncio, não havia mais o que ser dito. Pairava no ar ainda o leve perfume que deixam os amantes depois do amor. Mal sabia ele que a lembrança desse perfume o perseguiria por toda a vida.

Dois anos antes, ao chegar no lugar, cheio de expectativas e de sonhos, comum para um cara de vinte anos, não imaginava que ali sua vida seria transformada de tal maneira que, vinte e muitos anos depois, ainda lhe seria viva a memória daqueles dias, do calor dos trópicos, das amizades que lá nasceram, das experiências nunca antes vividas ou sequer imaginadas. E o pior (ou melhor), de como foi marcado n’alma por aquela que viria a ser o grande e verdadeiro amor de sua vida.

No início, tanta coisa nova que a vida lhe era surpreendente. Antes disso sua vida era a de um cara comum, de uma cidade comum, de um lugar comum...

Ao chegar neste novo lugar, um calor medonho e algumas pragas típicas da selva tropical alegravam seus dias. Cidade de fronteira, o povo se misturava entre amazonenses, colombianos e peruanos. Quando em vez aparecia um ou outro gringo. Morava com um amigo, o Bastião, que havia sido transferido no mesmo período e no mesmo avião.

A cidade era peculiar, cidade de fronteira, tinha vida noturna, cultura típica, logo ele se misturou com o povo. As amizades mais próximas eram seus conterrâneos do sul. Assim, entre noites de truco e cerveja, entremeadas por alguns tapas em mosquitos vingativos, o tempo ia passando.

O trabalho ia bem, amigos que se ia fazendo, até que conheceu o Gaúcho, professor de Educação Física do maior colégio da cidade, e em uma de suas conversas surgiu o papo de que precisava de ajuda com os treinamentos de algumas modalidades esportivas, pois os jogos da cidade estavam próximos. Acabou certo de ele treinar a equipe de handebol da escola.

No dia da “peneira”, parecia festa de Cosme e Damião de tanta criança e adolescente. Formados alguns times, a bola não parava um só minuto atropelada pela molecada. Eis que, no meio da tarde, um pouco antes da chuva costumeira e barulhenta, aconteceu...

Ela apareceu, talvez por curiosidade, ou pela falta de algo melhor pra fazer, só sei que estava lá. Morena, pequena.

Bela? A mais de todas. Olhar agateado, penetrante e um pouco enigmático. Como dizem na costa do Rio Uruguai: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay!”. No intervalo entre as partidas, como pretexto, perguntou-lhe se queria jogar. Na hora ela tirou os calçados e foi descalça para a quadra. Ali começou seu encantamento. Incluso si no creo, las ay!

No dia 24 de junho daquele mesmo ano começaram a namorar. Andavam grudados. Passado algum tempo, e como o tempo é o maior e melhor conselheiro, disse a ele para que dissesse a ela que a amava.

- Eu te amo, gatinha!

E era mesmo. A gatinha e o amor. Quando ouviu aquilo ficou meio atônita, mas acabou aceitando. Nascia ali o mais verdadeiro e mais puro amor da vida deles (no julgamento dele). Ele tinha toda a certeza, embora não tivesse prestado atenção em todos os sinais, fato que depois lhe custaria muito caro, sem dúvida, o maior preço de sua vida.

E os dois compartilharam todas as coisas de um tempo que passou rápido demais. A música, festas, amigos, encontros e desencontros, a cama, a mesa e o banho, adormeciam e acordavam juntos... Justiça seja feita! Essa flor morena tinha tudo na medida certa, beleza e simpatia, corpo e alma, beijos e abraços, fogo e paixão...

Na maior parte do tempo era quase calada. Mas às vezes se punha a contar suas coisas e falava, como se estivesse guardando tudo pra um só momento, e falava... Ele chegava a pensar: “Nossa, ela fala como uma cachoeira, será que não cansa? ” Mas amava tudo nela, aquela fala sem fim o encantava.

Hoje, vinte e tantos anos depois ela ainda faz isso de vez em quando e ele ainda se encanta. Aliás, quando têm chance ficam horas ao telefone. Não ficam mais tempo porque precisam voltar para seus mundos, cada qual para a vida que o destino escreveu com a maior de todas as ironias. Falando nisso, ainda bem que a tecnologia evoluiu muito dos anos 90 pra cá. Santa tecnologia que aproxima as pessoas!

Seu último contato tinha sido há dez anos e ainda não havia as “mensagens instantâneas” de hoje, somente por e-mail contavam um ao outro como ia a vida. Mesmo assim já existia a rede social de nome parecido com iogurte, e foi por lá que se reencontraram. Já fazia um bom tempo que pensava nela... A penúltima vez que haviam falado eles já tinham seus primogênitos.

Por esse tempo o amadurecimento dos dois era evidente. Mas o estranho é que ele ainda sentia pela flor morena o mesmo amor que antes e que aos poucos também foi ficando evidente. Declarou-se novamente a ela, com todo o sentimento reprimido de tantos anos. Ela cedeu, disse que também o amava (ainda). Passaram a relembrar o que tinham vivido e cada vez que falava com ela seu coração parecia baquear. Ele tomou então a decisão de se afastar, com medo do que poderia acontecer, dos estragos que poderia causar a ambos. Sumiu de repente!

Voltando a lembrar daquele tempo de namorados é justo dizer que as noites de amor eram de entrega total. Woman in chains ou O Sal da Terra, Todo Azul do Mar ou Paisagem da Janela... dentre tantas outras, tanto fazia, a luz do aquário completava a cena. Hoje, ele olha para o aquário e lembra daquelas noites e respira fundo e descompassado.

(...) Depois de certo tempo daquela despedida lá nos trópicos ele telefonava às vezes. Ela ainda esperava pelo chamado dele pra viverem juntos, o que nunca aconteceu. Ela cansou de esperar e permitiu que o amor lhe sorrisse novamente. Ele, por sua vez, curtiu família, amigos e chegou à conclusão de que era realmente ela a sua cara metade. Ligou e fez o chamado que ela tanto esperara, mas era tarde demais!

Mesmo assim ela atendeu o pedido para ir visita-lo. Ele foi busca-la no aeroporto e viu abrir as portas do paraíso novamente. Estava com ela, o grande amor de sua vida. Tinham alguns dias juntos e nesses casos, o tempo voa. Mas era tarde demais!

Ele mostrou a ela a sua vida. Jurou o seu amor como nunca o fizera, nem a ela nem a ninguém. Fez de um tudo para encantá-la novamente, lhe mostrou o mar pela primeira vez, mas era tarde demais!

Por fim, lhe propôs uma vida juntos, um recomeço, chorava todas as noites em que estavam juntos, implorou. Tarde demais!

Ela resolveu voltar para seu mundo. Já estava decidida na vinda. Depois do último abraço no aeroporto ela disse:

- Fica com Deus! Eu te ligo tá? Mas não disse que o amava...

Ainda é muito viva para ele a imagem dela desaparecendo pela porta do avião. Tudo em volta se desfez. Mas ele tinha ainda a esperança de que ela voltaria para viverem juntos o amor que descobriram um no outro.

Ele ficou sem chão, sem ar, sem razão pra viver quando ela ligou chorando e pondo fim em tudo. Para ele o desespero foi tamanho que tratou de continuar a vida. Forçou logo outro relacionamento, se casando pouquíssimo tempo depois e hoje tem uma família linda. Ela também, voltou para sua vida, para seu escolhido, se casou, e tem uma família linda.

Quase trinta anos depois, parece que o destino não se faz satisfeito com suas ironias. Vejam só as coisas como são. Em meio a uma pandemia devastadora pelo mundo, ele viu na mídia que o lugar onde ela mora estava em sofrimento. Um número enorme de vítimas a cada dia. Pensou em procura-la.

Santa tecnologia...

Descobriu seu e-mail em uma rede social. Sem muitas pretensões mandou mensagem perguntando como ela estava, como ia a vida... Ela respondeu!

Já faz alguns meses que estão namorando. Trocam juras de amor. Relembram dos momentos que passaram juntos. Falam da imensa dor que os consome por não terem ficado juntos naquele tempo. Imaginam como teria sido juntos... Sonham e fazem planos para se reencontrar, para viver, enfim, o puro e verdadeiro amor de suas vidas.

Conversam ou trocam mensagens todos os dias. Nos últimos dias estão um pouco mais distantes por conta de uma viagem dela. Ele passou também a amar a dor, a saudade, a distância, a sua falta, pois de qualquer jeito são coisas relacionadas a ela.

Hoje ela disse que amanhã já estaria de volta em casa... Ele teve um lampejo e sonhando se imaginou buscando-a no aeroporto, beijando sua boca, a abraçando forte e dizendo o quanto ela fez falta todo esse tempo, o quanto a casa ficou vazia e sem graça, o quanto a cama esteve fria e deserta, o quanto tudo esse tempo todo.

Mas Deus é grande em sua bondade com os apaixonados e desesperados. Ela disse que está voltando pra casa! Amanhã! Ele começa a arrumar tudo pra sua chegada. Esperou tanto!

Ele a ama mais que tudo nesse mundo! Deseja que faça boa viajem e que o vento sopre rápido para traze-la aos seus braços. Ele ainda está esperando ansiosamente a sua volta.

Nesse momento, de olhos fechados, olhos d’água, ele cheira o pulso com o perfume enviado por ela em um frasquinho junto com outras coisinhas. Desesperado chora. Mas ela vai voltar e enfim o destino dará um fim em suas ironias e poderão viver seu amor em paz, até o fim!

Eu te amo!

10 de julho de 2021.

Olhos Dágua
Enviado por Olhos Dágua em 16/07/2021
Reeditado em 17/07/2021
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