O sentido do amor sentido

O sol nem havia chegado direito e eu já estava tomando o meu café com aquele pão de leite bem quentinho e a manteiga de garrafa que minha vizinha deixara para mim. Eu costumava acordar mais tarde, visto que, por muito tempo, adentrava a madrugada estudando para a conclusão do curso. Foi um período em que não desviei o foco e deixei muita coisa para depois, como o encontro com os amigos, comprar roupas e sapatos

para as poucas festinhas naquele lugar tão pacato. Tudo valeria a pena depois da festa de colação de grau. Eu não estava fazendo nenhum sacrifício, pelo contrário, eu fazia como um investimento. Sonhava com um lugar ao sol. No entanto, após passar essa fase, eu sentia que faltava algo mais, que existia um vazio quando eu olhava para o meu futuro.

Eu só não sabia como resolver aquele desafio, devido às minhas limitações e às possibilidades encontradas numa cidade pequena, com pouco mais de vinte mil habitantes, poucos recursos e o limitado mercado de trabalho.

Assim, passava o tempo: dias em que indagava o futuro, horas em que o planejava calmamente sentada na areia da praia. Naquele dia, em especial, ocupei-me de ir a um salão de beleza e de arrumar a roupa para uma festa. Bom gosto eu tinha, o que me faltava era grana. Com sorte, encontrei algo que veio de encontro ao meu perfil.

À noitinha, fui ao casamento do meu melhor amigo. Eu estava feliz e, apesar do momento e das boas companhias, aquela situação martelava na minha cabeça: eu sentia que a vida queria mais de mim. E ela corria depressa. Sentia que o tempo passava por entre meus dedos. Era preciso uma estratégia para içar os meus sonhos para longe dali e, assim talvez, mudar o mindset.

A Igreja estava lotada. Ao som da marcha nupcial, os noivos entraram. O padre já aguardava no altar e o casamento seguiu tranquilamente. Após a cerimônia, os convidados seguiram para o salão paroquial e ali fomos recebidos de forma aconchegante. Senti-me à vontade e, no fundo, culpava o amor-próprio por isso. Eu usava um vestido de cetim, na cor azul bic, com uma fenda que chamava à atenção. Embora não gostasse daquele tipo de roupa, a ocasião me incentivou para a ousadia. Meus

cabelos estavam arrumados, prendidos apenas por um grampo invisível e a maquiagem era bem leve.

Tudo corria serenamente até a hora do brinde aos noivos. Com as mãos ocupadas, uma com a taça de champanhe e a outra com o buquê da noiva, enquanto a mesma se preparava para fazer o corte do bolo, de repente fui surpreendida com um esbarrão de um homem que estava de costas para mim e, num gesto atrapalhado, derramou vinho no meu vestido. Ele percebeu o meu constrangimento. Era o padrinho dos noivos que fazia uma homenagem para eles naquele momento. Um homem alto, bem vestido, bonito e de um olhar penetrante. Olhou-me nos olhos, pediu desculpas pelo ocorrido e, sem que percebêssemos, nosso olhar se prolongou e nos tirou de tempo até sermos interrompidos

pelo garçom, que nos oferecia outra taça. Aceitei e, fui à toalete me recompor. Dispersos, fomos cada um para um lado naquele espaço, mas a figura do rapaz seguiu no meu pensamento e, por mais que eu tentasse, não conseguia esquecer o seu olhar.

Durante toda a festa, eu procurei evitar o contato dele, sempre me saindo das situações que nos aproximavam. Como eu estava no meio de muitos amigos, tinha sempre com quem conversar e isso nos manteve distante.

Quando terminou o cerimonial, os convidados iam saindo e caía uma chuva forte lá fora. A visibilidade do tempo era pouca e esfriava gradativamente. Como eu ainda não tinha um transporte para chamar de meu, acenei para o primeiro táxi que vi passando ali em frente. De imediato aquele carro parou e o motorista abriu a porta para mim.

Surpreendi-me com a agilidade e a presteza dele e, sem pestanejar, sentei-me no banco de trás do carro, ao tempo em que atendia ao meu celular. Diante daquele pé d´água e da penumbra, não me dei conta que não era exatamente um táxi e que tinha mais alguém dividindo aquele banco comigo. Fez-se um silêncio que só foi quebrado pelo motorista quando perguntou para onde deveríamos ir. Uma voz calma e serena disse ao motorista que a indicação deveria ser minha. Tomei um grande susto quando fixei meus olhos no homem e vi que era ele, o mesmo que me marcou com seu olhar. Sorri timidamente e fiquei embaraçada. Quis

sair do carro, mas fui contida por ele que, me tranquilizando, explicou que já estava saindo no seu carro quando me viu pedindo um táxi e que estava tudo certo. Que não tinha pressa e que poderia me deixar em casa. Olhando-o ali tão próximo, senti uma paz inexplicável e, sem saber o que dizer ou fazer, indiquei o meu endereço. Durante o percurso até minha residência, o tempo chuvoso não cessava. No som do

carro uma música clássica tocava baixinho. Não nos dissemos uma só palavra e, quando nos demos conta, fomos informados que tínhamos chegado. Fiz um gesto de agradecimento e desci apressadamente do carro e pisei em falso. A pressa, a chuva, o descuido e, talvez, o embaraço me levaram ao chão. Eu tinha bebido um pouco,

confesso. Aquela noite inusitada, somada a um salto fino e alto, numa rua de calçamento mal feito, foram suficientes para aquele tombo. O que faltava me acontecer? Pensei e, ainda aturdida, só me dei conta daquela mão segurando a minha, e a voz, agora familiar, me dizendo, que estava tudo bem, mas que seria preciso me levar a um hospital para conferir se o meu pé estava bem. Naquele instante, percebi que tínhamos que conversar e que o destino queria algo a mais de nós dois.

No trajeto para o hospital, dissemos nossos nomes, telefones, redes sociais e várias outras informações antes não ditas. Fui medicada pela torção do pé e orientada a usar bota ortopédica por um mês. Ele não deixou que eu arcasse com nenhum custo de hospital e farmácia.

No caminho de volta para casa, até o motorista sorria da situação. Contudo, chamou a atenção do seu patrão para a hora e lembrou que já era quase manhã e que ele precisava descansar um pouco para dar continuidade às atividades do dia seguinte. Foi, então, que eu fiquei sabendo que o homem era um grande empresário do ramo imobiliário da

capital do Estado. Eu pude, naquele momento, emendar a fala contando da minha saga para me formar em engenharia. A tudo ele ouvia com bastante atenção, não dava importância ao horário. A buzina de um carro cortou aquela sintonia da conversa e o motorista fez sinal de

cansaço. Fiz, então, um gesto de agradecimento e fui abrindo a porta do carro para sair, quando o mesmo perguntou se podíamos no falar no dia seguinte. Hesitei, porém, confirmei que sim e saí.

Após o café, levou-me para conhecer uma das obras que sua empresa estava construindo na cidade e falou-me do quanto estava otimista com aquela empreitada. Eu tinha muita teoria e, sabendo que fui boa aluna, acho que me saí bem. O dia passou muito rápido, quanto mais nos falávamos, mais tínhamos o que dizer. Acabamos, assim, por passar o dia juntos. Quando me deixou em casa, no final da tarde, agradeceu a companhia e disse que tinha de viajar no dia seguinte, mas que ficaria muito feliz se pudéssemos jantar juntos.

Às vinte horas, conforme combinado, lá estava aquela criatura que já povoava todos os meus sonhos, na minha porta. Durante o jantar, olhando me nos olhos, ele falou que tinha uma proposta a me fazer. Disse que no seu escritório tinha vaga para dois trainees e, que uma poderia ser minha. Segurei a emoção e disse que responderia depois. Enviei meu currículo para o celular dele, ali mesmo. A conversa rolou até altas horas. Era como se nos conhecêssemos há muito tempo.

Quando foi me deixar em casa, insistiu que eu respondesse se aceitava o desafio da sua proposta, e eu confirmei. Disse-me, então, que no dia seguinte me pegaria por volta das seis da manhã para viajarmos para a capital. Entrei no meu quarto, mas dessa vez o sono não veio. Eu não queria acreditar que tanta coisa estava acontecendo e com tanta velocidade. Será que eu estava processando direito? Olhei tudo ao meu redor, tomei um banho demorado, fiz minha mala, relembrei os últimos acontecimentos e, por fim, deitei e apaguei.

Acordei ao som do despertador. Ele já estava lá embaixo esperando por mim. Era pontual. Não aconteceu despedidas, eu estava morando sozinha. Quando entrei no carro e partimos, não olhei para trás: algo me dizia que a minha história ganhava outro rumo naquele momento. Eu não sei de onde veio tanta coragem, nem tampouco eu sabia o que tinha naquela pessoa que me dava tanta segurança. Fiz o sinal da cruz e, ao passar frente à igreja, pedi proteção à Virgem Maria.

Na estrada, a conversa seguia solta. Ele falava dos seus planos de carreira e de como estava feliz com a nova equipe que estava contratando para seu escritório e, nessa fala, deixava claro o quanto tinha para me ensinar. Disse que era solteiro e que dividia sua casa com o Thor, o seu cachorro de estimação.

Quando chegamos ao nosso destino, fui instalada num pequeno apartamento individual, mas que fazia parte de um condomínio onde tinha boa parte da equipe dele residindo. Sua empresa contemplava um plano de ação para oportunizar a moradia de jovens iniciantes como eu, a preços mais baixos.

O meu primeiro dia de trabalho na instituição foi fascinante, pois vi ali inúmeras possibilidades para crescimento na minha carreira. Ele me apresentou para o time, não como uma profissional recém-formada, mas como uma pessoa de sua confiança, demonstrando, assim, que parecia já me conhecer e ter grande admiração.

Os dias se seguiram e eu, progressivamente, gostava do meu trabalho e da sintonia com o Martins.

De certo, algumas vezes fiquei sem saber como agir. Nunca pensei que alguém se importaria tanto por mim. Sem amigos importantes, sem luxos. Mas a data e, o que eu tinha falado e como estava o meu humor no dia que nos conhecemos, ele lembrava orgulhoso. “Esse alguém com certeza, se importava” eu pensava. E como estava sendo bom ter alguém que quisesse ir além das minhas cores, músicas ou comidas preferidas. Alguém que fizesse sentido para o que eu estava sentindo.

Nos meses seguintes, aconteceu uma grande demanda na empresa e conseguimos atingir todas as metas propostas. Martins estava muito feliz e uma nova filial acabara de ser inaugurada. Naquele dia sugeriu que poderíamos sair após o expediente para comemorar os feitos. Aceitei o convite, mas disse que precisava ir até minha casa para me trocar. Enquanto eu tomava uma ducha, Martins perguntou se poderia abrir um vinho. Ele estava eufórico com a confirmação dos rumos positivos que a empresa vinha desenhando, e eu estava tão feliz quanto. Ao chegar à sala de estar, ele me olhou de um jeito que me deixou corada. Resolvi preparar um prato de frios e fomos ficando por ali mesmo. O seu cheiro, a sua voz calma, os gestos brandos, sua inteligência - tudo nele prendia minha atenção e eu não desgrudava dos olhos dele. Meu corpo tremia de desejo.

Era tanta coisa para ser dita, mas um beijo calou a nossa voz. O sentimento não cabia mais em nós. Entregamo-nos e vivenciamos a mais linda noite de amor. Aquela que o mundo e o infindável resumia-se em nós dois. O vinho? Não lembro se era tinto.

Seis meses depois, Martins e eu nos casamos e, não por ironia do destino, na mesma igreja que nos conhecemos.

Luzinete Fontenele
Enviado por Luzinete Fontenele em 19/08/2021
Reeditado em 06/10/2021
Código do texto: T7324098
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