Tanto Amor Pra Dar Em Nada

As palavras ficaram vazias.

De repente nada mais a dizer.

Sentia-me um deserto.

Diante do seu corpo inerte, eu me sentia morrer também.

Mesmo ali naquela urna funerária ele me parecia lindo. Seu rosto era perfeito. Cada traço, cada linha. Como se fosse uma pintura belíssima.

Silenciosamente eu conversava com ele e sei que ele me escutava. Por que tudo teve que ser como foi? E por que ele tinha que partir tão cedo? Tinha quarenta e poucos anos mas aparentava bem menos. Pedi perdão, declarei meu imenso amor.

Nós nos conhecemos ainda na infância no colégio. Éramos colegas e nos tornamos amigos.

Ele sempre foi muito introspectivo, tímido e comedido. Eu já era mais extrovertido, comunicativo.

Na adolescência eu senti que meu sentimento por ele era muito mais que amizade. Mas ele nunca demonstrou mais que amizade por mim e eu fiquei na minha. Sufocava meu amor e minha orientação sexual. Numa cidade do interior conservadora e preconceituosa dos anos 1960, não era fácil ser homossexual.

Quando ele namorou pela primeira vez eu fiquei alucinado de ciúmes. Não suportava vê-lo com aquela garota. Até aquele momento ele era o meu melhor amigo e a gente estava sempre juntos.

Aquele namoro adolescente terminou após algum tempo e eu me senti feliz novamente. Estávamos sempre juntos e ele nem desconfiava dos meus sentimentos por ele.

Eu sempre pensava em me declarar mas tinha medo de perder até a sua amizade.

E assim fomos vivendo. Vieram outras namoradas. Alguns namoros mais sérios, outros só namorico. E eu morrendo por dentro, corroído pelo ciúme. Como ele era muito bonito e charmoso as garotas ficavam enlouquecidas por ele. E eu querendo tê-lo só pra mim. E tinha que guardar segredo sobre este sentimento.

Muitas vezes armei intrigas pra separá-lo das namoradas.

Algumas vezes sentia que ele também sentia por mim mais que amizade. Mas ele nunca demonstrou abertamente e isto me deixava sem coragem de tomar uma iniciativa. Ele sempre estava com alguma garota.

Por muitos anos fomos amigos. Eu sempre estava junto com ele mas muitas vezes ele me desprezava e dizia que eu era muito grude, que não largava dele. Eu ficava imaginando que ele desconfiava de meus sentimentos e por isto zombava de mim mas me mantinha cativo.

Quando ele ficou noivo de uma garota eu pensei que se não tomasse uma atitude eu o perderia pra sempre.

Estávamos então com trinta e oito anos. Eu o chamei pra sair pra gente conversar e tomar um chope. Ficamos por muito tempo conversando. A gente sempre tinha muitos assuntos.

Quando saímos ao nos aproximarmos do carro eu, que tinha bebido alguns chopes, me enchi de coragem e me insinuei pra ele. Toquei seu rosto, me aproximei mais para beijá-lo. Ele me repeliu com violência e quase me acertou um soco.

Entrou no carro e foi embora me deixando sozinho e desolado.

Depois disso, muitas vezes tentei falar com ele, tentei me explicar. Mas ele nunca mais falou comigo. Um tempo depois terminou o noivado e ficou sozinho.

E naquele fatídico dia eu o perdi para sempre. A dor que senti não dá pra descrever. Perder pra morte alguém que a gente ama é muito triste. Mesmo ele não falando mais comigo ou talvez me odiando, isto ainda era tolerável. Eu sabia que ele estava por aí, muitas vezes o via e meu coração acelerava. Mas a morte é muito cruel. Eu estava ali olhando pra ele inerte. Sabia que horas depois só me restaria dele as lembranças, o amor, os bons momentos de nossa amizade.

Por muito tempo eu senti a dor daquela perda até que só restou a saudade que levarei comigo enquanto viver. Ele foi o único amor da minha vida.

Hoje, com quase setenta anos, sou solitário. Nunca tive coragem o suficiente para assumir minha homossexualidade. Nunca namorei, nunca fui feliz. Sempre fui frustrado. Muitas vezes penso que perdi a chance de ser feliz. Primeiro por amar demais alguém que nunca me amou e depois por não me dar uma chance de conhecer outras pessoas e por não ter coragem de ser quem sou.

Hoje sei que não vale a pena viver escondendo a verdadeira identidade para dar satisfação à família ou à sociedade.

Meu tempo passou e só me resta sobreviver até onde a vida me levar e ter a esperança de um dia, em outra dimensão, reencontrar o meu grande amor e que ele me reconheça como o seu grande amor.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 20/02/2022
Reeditado em 20/02/2022
Código do texto: T7456459
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